O chefe de produção do canal de documentários da Al-Jazeera, o palestino Montaser Marai, esteve no Brasil como um dos convidados da III Mostra Imagens do Oriente, do ICArabe. Não parou. Além do colóquio do qual participou ao lado do iraniano Massoud Bakhshi, cruzou a cidade nos cerca de dez dias que ficou em São Paulo iniciando e costurando acordos com instituições brasileiras. Para o repórter, sobrou a possibilidade de conversar por email. Ele faz parte de um setor do canal qatar que prima por densidade na informação. “A emissora percebeu a importância de lançar um canal de documentários para dar base e informação aprofundada sobre diferentes questões mundiais". Talvez por isso o trabalho dos jornalistas da Al-Jazeera seja difícil. “Não é permitido ao canal trabalhar em muitos países árabes e em Israel. Foi difícil cobrir a guerra de Gaza pelo lado israelense. Também um dos principais prédios foi bombardeado pelo exército de Israel e alguns jornalistas foram mortos durante a guerra de Gaza de 2008/2009 e a do Líbano em 2006". Nesta edição, o ICArabe conversa com Marai sobre a mudança que a Al-Jazeera instituiu no jornalismo dos países árabes, mais especificamente na área de documentários.
a Arturo Hartmann
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ICArabe: Em primeiro lugar, conte um pouco sobre sua história. Sei que você é palestino. Qual a história de sua família? E como você acabou no jornalismo?
Montaser Marai: Minha família vivia na Palestina, Cisjordânia, e saiu de lá para a Jordânia depois da guerra de 1967, época em que o exército israelense ocupou o resto das terras palestinas e completou o que começou em 1948. Da Jordânia, minha família mudou-se para o Kuwait, onde há uma grande comunidade de palestinos que deixaram o país pela mesma razão. Lá, nasci em 1975. Gostava de escrever desde jovem e comecei a trabalhar para jornais universitários e como repórter para jornais locais. O ativismo estudantil e o fato de escrever na universidade melhoraram minhas habilidades, já que estávamos livres das amarras do poder do dinheiro e da política. Trabalhei no meu último ano da faculdade para uma TV local e construí meu caminho para ser um jornalista da Al-Jazeera.
ICArabe: Como você define o jornalismo nos países árabes antes da Al-Jazeera?
Marai: Bom, era um jornalismo jovem, digamos assim. E a mídia era dos governos e não do povo. Em países árabes, você podia ler notícias ou assistir a TVs e saberia notícias apenas do presidente! Você não pode tocar ou falar sobre questões sensíveis e não há liberdade de expressão na maioria dos países árabes. A Al-Jazeera é um ponto de mudança na mídia e na liberdade de expressão não apenas nos países árabes, mas internacionalmente, já que entrega diferentes visões de diferentes ângulos. Tornou-se a voz do sul, falando de um ponto de vista cultural.
ICArabe: Uma vez, conversando com uma jornalista egípcia (Mona Anis, entrevista do dia 11/9/2006), ela me disse que a Al-Jazeera era, em primeiro lugar, a criação do emir do Qatar, inclusive bem relacionado com os Estados Unidos. Mas ela disse também que o que fazia a emissora especial e uma boa fonte de jornalismo era o fato de juntar jornalistas de diferentes países árabes cansados da maneira com a qual a informação era produzida. Você concorda? A Al-Jazeera é a soma dessa empresa que quer (e precisa) de dinheiro e lucro, mas com a energia de uma nova geração de jornalistas que querem ser a voz do sul?
Marai: Sim, é verdade. Al-Jazeera foi uma ideia do emir do Qatar, uma ideia muito inteligente. O Qatar sustenta financeiramente a Al-Jazeera, mas a mantém independente e não se envolve em sua política editorial, o que faz o canal muito forte. A diversidade de jornalistas não apenas de países árabes mas de todo o mundo adicionou um grande valor à emissora. Muitos deles não podiam contar a verdade em seus países, mas quando se juntaram à equipe da Al-Jazeera, puderam. Os jornalistas de fato não trabalham apenas por dinheiro, mas realmente sentem que são a voz das pessoas sem voz.
ICArabe: E o que a emissora mudou no cenário do jornalismo dos países árabes?
Marai: A Al-Jazeera levantou o bloqueio à liberdade de expressão na mídia e permitiu dar força às pessoas que criticavam as ações erradas de seus governos. Também forçou TVs e jornais a contar a verdade, pois se não o fizessem, a Al-Jazeera faria.
ICArabe: Quais os números de documentários produzidos pelo canal?
Marai: Estamos produzindo cerca de 225 horas este ano e comprando cerca de 800. Isso significa que temos cerca de 1400 filmes ou títulos por ano, e você não pode comparar isso a nenhum outro canal de TV porque a Al-Jazeera Documentários passa 24 horas apenas de documentários.
ICArabe: Qual a dificuldade de se produzir um documentário em países árabes? Não falo apenas da questão de custos e financiamento, mas de censura política?
Marai: Era difícil produzir, mas agora está ficando melhor. Realizadores podia tocar em muitas questões sensíveis, mas muitas vezes não encontravam uma forma inteligente, diferente ou indireta para driblar a censura. Você podia fazer um filme sobre qualquer coisa, mas não encontrava o canal de TV que tivesse a coragem de exibi-lo. Nós, na Al-Jazeera, estamos tentando ser um “lugar seguro” para estes tipos de documentários.
ICArabe: Uma vez um documentarista libanês me disse que há uma nova onda de produções, um novo esforço de realizadores e mesmo jornalistas no Oriente Médio, produzindo documentários de custo baixíssimo, com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Bastava apenas, por exemplo, andar pela realidade da Palestina ocupada e filmá-la. Indo contra até o que entendemos como o jornalismo tradicional, “ouvir os dois lados”. Você vê esse movimento? E como a Al-Jazeera lida com isso?
Marai: Este é um movimento importante apoiado em novas mídias e novas tecnologias. Agora, muitos realizadores podem pegar uma câmera e apenas andar pelo local a ser coberto. Nós estamos produzindo e comprando muitos documentários dessa forma e apoiando realizadores independentes.
ICArabe: Como você analisa a cobertura da mídia ocidental da realidade do Oriente Médio com a qual você lida diariamente?
Marai: Alguns desses jornalistas estão dizendo a verdade, outros não querem dizer. Alguns querem mas são mal guiados. Alguns têm a imagem errada e simplesmente não querem mudá-la. Há ainda por vezes pressão de governos ocidentais que posam com sua liberdade de expressão no Ocidente, o que é na verdade uma liberdade de expressão seletiva. Dessa forma, você pode perceber o que eles querem da transmissão. Durante os ataques à Gaza, muitos americanos não podiam receber qualquer notícia do local. Por quê? Hoje eles têm uma cobertura intensiva sobre os protestos contra o regime no Irã! Não sou a favor ou contra o regime no Irã, mas sou contra dois pesos e duas medidas.