foto: Carta Capital
Ana Cristina Fernandes*
Regiões ricas são aquelas onde estão localizadas atividades econômicas modernas e dinâmicas e recursos humanos qualificados, onde a produtividade e a renda do trabalho são elevadas, onde existe infra-estrutura econômica (energia, transportes, telecomunicações etc.), mas também são aquelas onde existem cidades capazes de oferecer à economia e à sociedade regionais os serviços e bens necessários ao seu desenvolvimento. Regiões estagnadas são, em contrapartida, aquelas onde a renda e a produtividade são baixas, onde os setores econômicos predominantes são tradicionais e a mão de obra é pouco qualificada, e onde o fenômeno urbano é raro. Sendo assim, políticas regionais de desenvolvimento devem incluir o combate à raridade do urbano no país. Essas são algumas das conclusões a que chegou o estudo "Tipologia das Cidades Brasileiras”, elaborado em 2005 pela equipe do Observatório Pernambuco de Políticas Públicas para o Ministério das Cidades . Com o objetivo de subsidiar a construção da política urbana do Governo Lula, a iniciativa se somou a um conjunto de outros esforços de retomada do planejamento no Brasil, depois de quase duas décadas de políticas de curto prazo focadas no controle da inflação e da dívida externa. A idéia era identificar diferenças marcantes entre as então 5.507 sedes de municípios brasileiros de modo a se prever ações e instrumentos adequados para o desenvolvimento urbano e melhoria da vida dos cidadãos.
Na concepção da equipe, essa idéia significa necessariamente pensar o urbano na sua dimensão regional, isto é, compreender a cidade como um fator de distribuição de infra-estruturas, serviços públicos e oportunidades para a população no território, do que apenas focar na sua perspectiva intra-urbana. Ultrapassa-se assim a leitura mais tradicional e urgente da política urbana proposta historicamente no país voltada para as metrópoles e grandes cidades, onde se concentram excessivamente a população, os investimentos e os problemas urbanos. A tipologia deveria, assim, chamar a atenção também para as porções do território de ocupação mais recente e aqueles carentes de estruturas urbanas, leitura esta fundamentada no princípio de ampliação de oportunidades para parcelas mais amplas da população brasileira a partir do reconhecimento da diversidade do território e da sociedade.
Logo ficou evidente que tal perspectiva exigia a escolha de uma definição de cidade como ponto de partida para o estudo. E não custou encontrá-la: cidade ficou compreendida dali em diante como concentrações geográficas de excedente social, onde se articulam comércio e funções de mercado regional, centros de cultura e aprendizagem e a descoberta, produção e difusão de idéias e inovações, beneficiando-se de condições propiciadas por economias de escala e aglomeração; um modo de organização social que desempenha papel crucial para o produto nacional via prestação de serviços e distribuição de bens para a sociedade de um determinado espaço geográfico, maior que o seu – a região.
Falamos, assim, não de meras sedes de município, mas de lugares que oferecem as bases materiais essenciais ao processamento de atividades produtivas e de reprodução do trabalho na região que a cidade polariza, sem os quais se constituem gargalos consideráveis ao desenvolvimento regional. Sem cidade são desperdiçadas frações consideráveis do território, de riquezas naturais, de potencialidades econômicas e de talentos individuais que simplesmente não se realizam na ausência do fenômeno urbano. O frágil sistema urbano bloqueia a divisão de trabalho, a criação de trabalho novo e de renda, as oportunidades de desenvolvimento dos cidadãos e de sua capacidade de auto-determinação, o que reitera a estagnação regional e o ciclo vicioso do sub-desenvolvimento.
Sabendo que a essência do desenvolvimento no mundo contemporâneo está cada vez mais relacionada à capacidade de inovação das sociedades, essa noção de cidade destaca que a raridade do fenômeno urbano é uma barreira substancial à difusão da inovação nas regiões e, conseqüentemente, à redução de disparidades regionais. Não basta existir capital a ser atraído, nem infra-estrutura econômica, nem concentração populacional. É preciso infra-estrutura urbano-regional distribuída no território, em escalas e níveis de complexidade diferentes, correspondentes aos diferentes níveis da hierarquia urbana.
Mas sabemos também que a distribuição do fenômeno urbano no território é desigual, por força da própria natureza desigual da produção de riqueza no capitalismo. As cidades são concentrações geográficas porque o investimento ganha eficiência ao ser implementado de forma concentrada, em função de economias de escala e aglomeração. A capacidade de inovação, o investimento e a população mais qualificada vão se concentrar nas grandes cidades e metrópoles, ou nos pontos mais vantajosos do território para a maximização do lucro e do crescimento. Só que essa tendência ao desequilíbrio da rede urbana é tanto maior quanto menos desenvolvida forem a região e a cidade que a polariza. A rede urbana de regiões sub-desenvolvidas é acentuadamente desequilibrada, exageradamente concentrada no topo da hierarquia de cidades, carente de níveis hierárquicos intermediários (as chamadas “cidades médias”) e povoada de grande número de pequenos núcleos de população desprovidos dos serviços e funções mencionados.
O custo da raridade do fenômeno urbano é pago especialmente pelas populações das regiões mais isoladas obrigadas a percorrer grandes distâncias, muitas vezes de forma bastante penosa, para obter tais serviços, até mesmo para obter atendimento bancário, quanto mais serviço de saúde. Sendo assim, a excessiva concentração de população e investimentos em poucas cidades leva ao sofrimento de muitos cidadãos e ao desperdício de partes consideráveis do território e de indivíduos talentosos que não conseguem se desenvolver na ausência de infra-estruturas e políticas sociais básicas, especialmente de educação.
Agrava a situação o fato de que a urbanização concentrada é difícil de ser enfrentada, pois decorre de práticas e padrões culturais social e historicamente construídos que influenciam o comportamento dos indivíduos e exigem muito mais que a simples alocação eficiente de fatores. No Brasil, o sistema urbano nasce excessivamente concentrado ao longo do litoral, expressão da estrutura econômica colonial orientada para a fácil exploração, proteção e integração da colônia à metrópole portuguesa. Lentamente, e acompanhando o processo de integração do mercado nacional, este quadro foi se modificando, mas só no século XX, mais acentuadamente na década de 1970, é que se observam mudanças significativas que vão finalmente alterar a distribuição de riqueza e população no território. O centro de gravidade da economia nacional se consolida no sudeste, mas intensifica-se o processo de expansão da fronteira agrícola e mineral, com o incentivo do Estado, promovendo a interiorização da população e do investimento. A crise da dívida externa na década seguinte acentuava essa expansão, à medida que exportações de soja, carne e outras commodities agrícolas e minerais auxiliariam a redução do déficit comercial agravado pelos choques do petróleo.
Este movimento favoreceu a criação de novos e o crescimento de antigos núcleos urbanos no interior do país, propiciando alguma infra-estrutura para territórios distantes das áreas urbanas históricas, reduzindo a dependência pelas grandes metrópoles. Mas o processo de interiorização não foi acompanhado de medidas que assegurassem a expansão adequada da rede de cidades. A ação do Estado não contemplou o crescimento correspondente da oferta de serviços públicos nem das economias urbanas mencionadas, evidenciando-se a generalizada baixa qualidade da urbanização nas novas áreas dinâmicas do centro-oeste, da Amazônia e a melhoria dos núcleos urbanos do Nordeste.
Apesar então da complexidade e mesmo desconcentração observadas, em pleno século XXI, parcelas consideráveis do território ainda estão mal atendidas pela urbanização. As fronteiras pioneiras do país, para onde tem se dirigido intenso fluxo migratório nas últimas décadas, ainda carecem de cidades como pontos de apoio para o desenvolvimento dos indivíduos, para a exploração das oportunidades existentes no “novo” território, e para a elevação da produtividade. Áreas estagnadas de ocupação mais antiga, por sua vez, permanecem persistentemente à margem dos novos dinamismos, incapazes de realizar suas potencialidades, o que se expressa na perda de população de pequenas e médias cidades.
Defendemos, assim, que o dinamismo do território, por si só, não é capaz de alterar a fragilidade da rede urbana, cuja superação requer então mecanismos que exigem efetivas e persistentes políticas públicas. Política urbana deve ser entendida como crucial para o desenvolvimento do país: é necessário contrabalançar os efeitos negativos da concentração urbana excessiva por meio da ação indutora do Estado, particularmente na melhoria da oferta de serviços públicos e de oportunidades para autodeterminação dos membros de sociedades locais (educação, cultura, saúde, estruturas administrativas e bancárias, abastecimento de água e energia, por exemplo). É preciso combater a raridade do fenômeno urbano.
Mas a ação deve reconhecer a diversidade de situações que ocorrem no território, assinalando a cada situação um conjunto de ações específicas. Áreas sem integração ou isoladas não podem ser objeto dos mesmos instrumentos de política urbana aplicados a áreas de crescimento acelerado e integradas, mas sem urbano. A cidades de regiões estagnadas e de baixa acumulação de riqueza devem ser dirigidos investimentos distintos daqueles a serem aplicados em cidades médias onde a “crise” urbana das grandes cidades já se reproduz; para as grandes metrópoles, a ação vai privilegiar a extremada concentração de população e riqueza, o desequilíbrio ambiental, as demandas de reprodução do trabalho historicamente reprimidas e as disparidades sociais, os conflitos e as carências que adquiriram grandes proporções, e exigem atenção especial. A política urbano-regional precisa, portanto, enfrentar tanto a concentração, como o urbano não metropolitano, inclusive aquele mais isolado ou rural, onde a base econômica é essencialmente agrícola ou agroindustrial, e aquele onde se manifestam oportunidades de desenvolvimento travadas pela falta de urbanização.
A tipologia de cidades haveria então de se fundamentar na necessidade de diálogo entre as duas abordagens: uma que parte dos territórios enfatizando a diversidade do território nacional e das densidades econômicas que os caracterizam, mensurados através do estoque de riquezas acumuladas e da dinâmica da criação de novas riquezas; e outra que parte da análise da rede de cidades e de sua capacidade de estruturar o território em regiões polarizadas. Passando-se aos procedimentos metodológicos, decidiu-se utilizar a tipologia de regiões proposta em 2003 pelo Ministério da Integração Nacional na Política Nacional de Desenvolvimento Regional, elaborada sob a coordenação da Profa. Tania Bacelar, quando esteve à frente da Secretaria de Desenvolvimento Regional daquele ministério.
A PNDR propunha a identificação de quatro tipos de microrregiões resultantes da combinação da variação do produto e da riqueza acumulada (medida pelo total do rendimento per capita): microrregiões de alta renda, dinâmicas, de renda baixa e estagnadas. Apesar das limitações da metodologia da PNDR, a leitura do mapa da tipologia de microrregiões mostra, de partida, que os tipos estão agrupados em sub-regiões, sendo que as sub-regiões estagnadas estão todas na metade superior do território brasileiro, enquanto as sub-regiões de alta renda estão preponderantemente na metade inferior. Essa leitura demonstra que ainda hoje persiste a clivagem que historicamente divide o norte-nordeste do centro-sul do país e confirmou a escolha de análise fatorial para identificação de agrupamentos de municípios (por falta de estatística específica apenas para os núcleos urbanos), segundo os tipos de microrregião da PNDR. Por outro lado, o mapa mostra também que as sub-regiões dinâmicas e estagnadas encontram-se mais distribuídas, enquanto as sub-regiões formadas por microrregiões dinâmicas, que expressam importantes transformações econômicas contemporâneas, encontram-se especialmente em áreas de expansão do agronegócio nos cerrados do oeste do Nordeste e na Amazônia oriental e meridional.
A análise fatorial que levaria ao agrupamento de municípios, do qual se originaria a tipologia, deveria incluir um conjunto de variáveis que permitisse a identificação de propriedades relevantes para a política tais como desigualdade social (índice de Gini), características inerentes à posição geográfica da cidade (empregados em atividades rurais), tamanho funcional (posição hierárquica na rede urbana), características internas à socioeconomia da cidade (total de depósitos bancários à vista) e tamanho populacional. Este último, bastante utilizado em estudos de rede urbana, era assim contemplado e atendia à previsão do Estatuto das Cidades que prevê a obrigatoriedade de plano diretor para municípios acima de 20 mil habitantes, e o reconhecimento de que são relativamente poucos os municípios acima de 100 mil situados fora do eixo litorâneo. As faixas adotadas foram então: municípios acima de 100 mil habitantes (224 dos 5.506 existentes em 2005), municípios entre 20 mil e 100 mil (1.265) e municípios abaixo de 20 mil habitantes (4.017 municípios). Adicionalmente, contemplando a compreensão de que os municípios integrantes de aglomerações metropolitanas e não-metropolitanas (28 aglomerações ao todo) fazem parte de um mesmo conjunto que não deve ser dissociado para efeito da política urbana, foi reajustada a distribuição de municípios por faixa populacional (a faixa acima de 100 mil passou a incluir 575 municípios). Finalmente, efetuou-se a análise multivariada reunindo-se todos os municípios acima de 100 mil em um único conjunto. As demais faixas, mais numerosas, foram analisadas por tipo regional. Após ajustes nos agrupamentos gerados pela análise fatorial, chegamos a 4 tipos de municípios na faixa acima de 100 mil habitantes, 9 tipos na faixa intermediária e 6 tipos na faixa de municípios até 20 mil habitantes.
Plotados os 4 tipos de municípios acima de 100 mil habitantes no mapa, logo se evidenciou a clivagem norte-sul: todos correspondem a aglomerações e centros regionais, mas os tipos 1 e 3 concentram-se em microrregiões de renda alta ou média no centro-sul e os tipos 2 e 4 em microrregiões de renda baixa ou estagnadas no norte-nordeste. A clivagem destaca-se ainda mais no mapa resultante da plotagem dos tipos intermediários 5 e 6 localizados nas microrregiões de alta renda (MR 1): estão todos localizados no centro-sul, particularmente no estado de São Paulo, e acompanham o eixo de interiorização mais dinâmico do agronegócio que integra este estado ao vizinho Mato Grosso e chega até Rondônia, mas já ultrapassando Goiás e alcançando Tocantins. Porém, a desigualdade social vem crescendo significativamente nestes tipos de município, enquanto não existem municípios médios de alta renda na metade norte do território nacional.
Em contrapartida, os municípios tipos 12 e 13 (localizados em microrregiões de baixa renda ou MR 4) estão todos no norte-nordeste e têm a maior parte da população ocupada em atividades rurais, sendo que os últimos são relativamente mais isolados e concentram-se na Amazônia ocidental. Os 6 últimos tipos (14 a 19) que tratam dos municípios com menos de 20 mil habitantes mostraram um elevado grau de heterogeneidade. Para os autores do estudo, como destaca Jan Bitoun, “ficou claro que os tipos sub-regionais da PNDR não permitiam caracterizar plenamente essas pequenas cidades, cujos perfis podem estar muito distintos do perfil microrregional, fortemente influenciado pelos municípios maiores”. A tipologia proposta deveria ser considerada um esforço preliminar que precisaria de caracterizações mais detalhadas a ser feitas com a ajuda dos “territórios rurais” propostos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Nestes casos, de qualquer forma, já dá para se afirmar que as intervenções diretas seriam muito mais por parte de ministérios voltados para o desenvolvimento social e para a promoção de infra-estruturas regionais do que do Ministério das Cidades.
Em síntese, pode-se dizer que, se de um lado há ainda muito o que se investigar para aperfeiçoar a tipologia de cidades proposta, o que inclui reduzir o número de tipos, eventualmente, por outro lado, pode-se dizer que muito avançou a visão da diversidade e heterogeneidade das cidades brasileiras no contexto das regiões que polarizam. Apesar de terem sido vistas por meio de informações agregadas dos municípios como um todo, ultrapassou-se os tradicionais limites do recorte populacional e da hierarquia urbana. Com isso, ficaram evidentes as distinções que separam centros urbanos considerados semelhantes em termos de hierarquia urbana e tamanho populacional (como Recife e Curitiba, por exemplo), em vista das características distintas das regiões em que estão inseridas (economias de densidade e dinamismo econômicos diferentes), em que pese o fato de que seja comum a ambas os problemas intra-urbanos que afetam as grandes metrópoles brasileiras. Ao mesmo tempo foi destacado o isolamento de partes importantes do território, cujo desenvolvimento está travado pela falta de cidades, assim como o crescimento da desigualdade nos tipos de cidade situados em áreas dinâmicas de ocupação recente. De modo geral, o conjunto de ações a serem propostas para cada tipo de cidades ganhou mais clareza, ao se evidenciar a importância do envolvimento não apenas do Ministério das Cidades, mas diversos outros setores da administração federal.
*Pesquisadora do Observatório de Políticas Públicas, Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco