"Queremos Uruguai cheio de engenheiros, filósofos e artistas"
O presidente eleito do Uruguai, José "Pepe" Mujica, reuniu-se com um grupo de intelectuais em dezembro de 2009 e fez alguns pedidos a eles: que contagiem todo o povo uruguaio com o olhar curioso sobre o mundo, que está no DNA do trabalho intelectual, e com o inconformismo. Mujica propõe também uma revolução na educação. "Escolas de tempo completo, faculdades no interior, ensino superior massificado. E, provavelmente, inglês desde o pré-escolar no ensino público. Porque o inglês não é idioma falado pelos ianques; é o idioma com o qual os chineses conversam com o mundo. Não podemos ficar de fora".
Pepe Mujica
Discurso proferido em dezembro de 2009 pelo presidente eleito da República do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano (El Pepe), dirigente histórico e fundador do Movimento de Libertação Tupamaros:
A vida tem sido extraordinariamente generosa comigo. Ela me deu inúmeras satisfações, mais além do que jamais me atrevera a sonhar.
Quase todas são imerecidas. Mas nenhuma é mais que a de hoje: encontrar-me aqui agora, no coração da democracia uruguaia, rodeado de centenas de cabeças pensantes.
Cabeças pensantes! À direita e à esquerda. Cabeças pensantes a torto e a direito, cabeças pensantes para atirar para cima.
Vocês se lembram do Tio Patinhas, o tio milionário do Pato Donald que nadava em uma piscina cheia de moedas? Ele tinha uma sensualidade física pelo dinheiro.
Gosto de me ver como alguém que gosta de tomar banho em piscinas cheias de inteligência alheia, de cultura alheia, de sabedoria alheia.
Quanto mais alheia, melhor. Quanto menos coincide com meus pequenos saberes, melhor.
O semanário Búsqueda tem uma frase charmosa que usa como insígnia:
“O que digo, não o digo como homem sabedor, mas sim buscando junto com vocês”.
Por uma vez estamos de acordo. Sim, estaremos de acordo.
O que digo, não o digo como chacareiro sabichão, nem como trovador ilustrado. Digo-o buscando com vocês.
O digo, buscando, porque só os ignorantes acreditam que a verdade é definitiva e maciça, quando ela é apenas provisória e gelatinosa. É preciso buscá-la porque ela anda correndo brincando de esconde-esconde. E pobre daquele que empreenda essa caça sozinho. É preciso fazê-la com vocês, com aqueles que fizeram do trabalho intelectual a razão de sua vida. Com os que estão aqui e com os muito mais que não estão.
De todas as disciplinas
Se olharem para trás, seguramente encontrarão algumas caras conhecidas porque se trata de gente que trabalha em espaços de trabalho afins. Mas vão encontrar muito mais rostos desconhecidos porque a regra desta convocação foi a heterogeneidade.
Aqui estão os que se dedicam a trabalhar com átomos e moléculas e os que se dedicam a estudar as regras da produção e da troca na sociedade. Há gente das ciências básicas e de sua quase antípoda, as ciências sociais: gente da biologia e do teatro, da música, da educação, do direito e do carnaval. Há gente da economia, da macroeconomia, da microeconomia, da economia comparada e até alguns da economia doméstica. Todas cabeças pensantes, mas que pensam distintas coisas e podem contribuir desde suas distintas disciplinas para melhorar este país.
E melhorar este país significa muitas coisas, mas entre as prioridades que queremos para esta jornada, melhorar o país significa impulsionar os processos complexos que multipliquem por mil o poderio intelectual que aqui está reunido. Melhorar o país significa que, dentro de vinte anos, o Estádio Centenário não seja suficiente para abrigar um ato como este, pois o Uruguai estará cheio, até as orelhas, de engenheiros, filósofos e artistas.
Não é queiramos um país que bata os recordes mundiais pelo puro prazer de fazê-lo. É porque está demonstrado que, uma vez que a inteligência adquira um certo grau de concentração em uma sociedade, ela se torna contagiosa.
Inteligência distribuída
Se, um dia, lotarmos estádios de gente formada será porque, na sociedade, haverá centenas de milhares de uruguaios que cultivaram sua capacidade de pensar. A inteligência que traz riqueza para um país é a inteligência distribuída. É a que não está só guardada nos laboratórios ou na universidade, mas sim anda pela rua. A inteligência que se usa para plantar, para tornear, para manejar uma máquina, para programar um computador, para cozinhar, para atender bem um turista é a mesma inteligência. Alguns subiram mais degraus do que outros, mas se trata da mesma escada.
E os degraus de baixo são os mesmos para a física nuclear e para o manejo de um campo. Para tudo é preciso o mesmo olhar curioso, faminto de conhecimento e muito inconformista. Acabamos sabendo porque antes ficamos incomodados por não saber. Aprendemos porque temos comichão e isso se adquire por contágio cultural desde quando abrimos os olhos ao mundo.
Sonho com um país onde os pais mostrem a pastagem a seus filhos pequenos e digam: “Sabem o que é isso? É uma planta processadora da energia do sol e dos minerais da terra”. Ou que lhes mostrem o céu estrelado e façam com que pensem nos corpos celestes, na velocidade da luz e na transmissão das ondas. E não se preocupem que esses pequenos uruguaios vão seguir jogando futebol. Só que, lá pelas tantas, enquanto vêem a bola picar, podem pensar ao mesmo tempo na elasticidade dos materiais que a fazem rebotar.
Capacidade de interrogar-se
Havia um ditado: “Não dê peixe a uma criança, ensina-a a pescar”.
Hoje deveríamos dizer: “Não dê um dado a uma criança, ensina-a a pensar”.
Do jeito que vamos, os depósitos de conhecimento não vão estar mais situados dentro de nossas cabeças, mas sim fora, disponíveis para buscá-los na internet. Aí vai estar toda a informação, todos os dados, tudo o que se sabe. Em outras palavras, aí vão estar todas respostas. Mas não vão estar todas as perguntas. O diferencial vai estar na capacidade de se interrogar, na capacidade de formular perguntas fecundas, que provoquem novos esforços de investigação e aprendizagem.
E isso está bem no fundo, marcado quase no nosso de nossa cabeça, tão fundo que quase não temos consciência.
Simplesmente aprendemos a olhar o mundo com um sinal de interrogação e essa se torna nossa maneira natural de olhar para o mundo. Adquirimos essa capacidade muito cedo e ela nos acompanha por toda a vida. E, sobretudo, queridos amigos, ela contagia.
Em todos os tempos foram vocês, os que se dedicam à atividade intelectual, os encarregados de espalhar a semente. Ou para dize-lo em palavras que nos são muito caras: vocês têm sido os encarregados de acender a necessária inquietação.
Por favor, vão e contagiem. Não perdoem a ninguém.
Necessitamos de um tipo de cultura que se propague no ar, entre os lugares, que se cole nas cozinhas e até nos banheiros. Quando conseguirmos isso, teremos ganho a partida quase para sempre. Porque se quebra a ignorância essencial que enfraquece muita gente, uma geração após a outra.
O conhecimento é prazer
Precisamos, antes de mais nada, massificar a inteligência, para nos tornarmos produtores mais potentes. Isso é quase uma questão de sobrevivência. Mas nesta vida não se trata só de produzir: também é preciso desfrutar. Vocês sabem melhor do que ninguém que, no conhecimento e na cultura, não há só esforço, mas também prazer.
Dizem que as pessoas que correm pelas ruas chegam num ponto em que entram numa espécie de êxtase onde já não existe o cansaço e só fica o prazer. Creio que ocorre o mesmo com o conhecimento e a cultura. Chega um ponto onde estudar, investigar e aprender já não é um esforço, mas um puro deleite.
Que bom seria que esses manjares estivessem a disposição de muita gente! Que bom seria se, na cesta de qualidade de vida que o Uruguai pode oferecer a sua gente, houvesse uma boa quantidade de consumos intelectuais. Não porque seja elegante, mas sim porque é prazeroso. Porque se desfruta com a mesma intensidade com a qual se pode desfrutar de um prato de talharim.
Não há uma lista obrigatória das coisas que nos tornam felizes! Alguns podem pensar que o mundo ideal é um lugar repleto de shopping centers. Nesse mundo, as pessoas são felizes porque todos podem sair cheios de sacolas com roupas novas e caixas de eletrodomésticos. Não tenho nada contra essa visão, só digo que ela não é a única possível.
Digo que também podemos pensar em um país onde a gente escolhe arrumar as coisas ao invés de jogá-las fora, onde se prefere um carro pequeno a um grande, onde decidimos nos agasalhar melhor ao invés de aumentar a calefação.
Esbanjar não é o que fazem as sociedades mais maduras. Vejam a Holanda e as cidades repletas de bicicletas. Aí as pessoas se deram conta de que o consumismo não é a escolha da verdadeira aristocracia da humanidade. É a escolha dos farsantes e dos frívolos.
Os holandeses andam de bicicleta, eles as usam para ir trabalhar, mas também para ir a concertos ou aos parques. Chegaram a um nível em que sua felicidade cotidiana se alimenta de consumos materiais como intelectuais.
De modo que, amigos, vão e contagiem todos com o prazer pelo conhecimento. Paralelamente, minha modesta contribuição será fazer com que os uruguaios andem de pedalada em pedalada.
Inconformismo
Eu lhes pedi antes que contagiem os outros com o olhar curioso sobre o mundo, que está no DNA do trabalho intelectual. E agora aumento o pedido e lhes rogo que contagiem também com o inconformismo. Estou convencido que este país necessita uma nova epidemia de inconformismo, como a que os intelectuais geraram décadas atrás.
No Uruguai, nós que estamos no espaço político da esquerda somos filhos ou sobrinhos daquele semanário Marcha, do grande Carlos Quijano. Aquela geração de intelectuais impôs-se a si mesma a tarefa de ser a consciência crítica da nação. Andavam com alfinetes na mão, estourando balões e desinflando mitos.
Sobretudo o mito do Uruguai multicampeão. Campeão da cultura, da educação, do desenvolvimento social e da democracia. Acabamos não sendo campeões de nada. Menos ainda nestes anos, nas décadas de 50 e 60, onde o único recorde que obtivemos foi ser o país da América Latina que menos cresceu em 20 anos. Só o Haiti nos superou neste ranking.
Esses intelectuais ajudaram a demolir aquele Uruguai da siesta conformista.
Com todos seus defeitos, preferimos esta etapa, onde estamos mais humildes e situados na real estatura que temos no mundo. Mas precisamos recuperar aquele inconformismo e colocá-lo embaixo da pele do Uruguai inteiro.
Antes eu dizia a vocês que a inteligência que serve a um país é a inteligência distribuída. Agora, digo que o inconformismo que serve a um país é o inconformismo distribuído. Aquele que invade a vida de todos os dias e nos empurra a perguntar-nos se o que estamos fazendo não pode ser feito melhor. O inconformismo está na própria natureza do trabalho de vocês. Precisamos que ele se torne uma segunda natureza de todos nós.
Uma cultura do inconformismo é aquela que não nos deixa parar até que consigamos mais quilos por hectare de trigo ou mais litros por vaca leiteira. Tudo, absolutamente tudo, pode ser feito de um modo um pouco melhor do que foi feito ontem. Desde arrumar a cama de um hotel até produzir um circuito integrado.
Necessitamos de uma epidemia de inconformismo. E isso também é cultural, também se irradia desde o centro intelectual da sociedade para sua periferia. É o inconformismo que fez com que pequenas sociedades ganhassem respeito sobre o que fazem. Aí estão os suíços, meia dúzia de gatos pintados como nós, que se dão o luxo de andar por aí vendendo qualidade suíça ou precisão suíça. Eu diria que o que vendem de verdade é inteligência e inconformismo suíços, que estão esparramados por toda a sociedade.
A educação é o caminho
Amigos, a ponte entre este hoje e este amanhã que queremos tem um nome e se chama educação. É uma ponte longa e difícil de cruzar. Porque uma coisa é a retórica da educação e outra coisa é nos decidirmos a fazer os sacrifícios necessários para lançar um grande esforço educativo e sustentá-lo no tempo. Os investimentos em educação são de rendimento lento, não iluminam nenhum governo, mobilizam resistências e obrigam o adiamento de outras demandas.
Mas é preciso seguir esse caminho. Devemos isso a nossos filhos e netos. E é preciso fazê-lo agora, quando ainda está fresco o milagre tecnológico da internet e se abrem oportunidades nunca antes vistas de acesso ao conhecimento.
Eu me criei com o rádio, vi nascer a televisão, depois a televisão a cores, depois as transmissões por satélite. Mais tarde, passaram a aparecer quarenta canais em minha TV, incluindo aí os que transmitiam direto dos Estados Unidos, Espanha e Itália. Depois vieram os celulares e os computadores que, no início, serviam apenas para processar números. Em cada um destes momentos, fiquei com a boca aberta. Mas agora com a internet se esgotou a minha capacidade de surpresa. Sinto-me como aqueles humanos que viram uma roda pela primeira vez. Ou que viram o fogo pela primeira vez.
Sentimos que nos tocou a sorte de viver um marco na história. Estão sendo abertas as portas de todas as bibliotecas e de todos os museus. Todas as revistas científicas e todos os livros do mundo vão estar a nossa disposição. E, provavelmente, todos os filmes e todas as músicas do mundo. É perturbador.
Por isso precisamos que todos os uruguaios e, sobretudo, todos os pequenos uruguaios saibam nadar nessa corrente. Precisamos subir essa corrente e navegar nela como um peixe na água. Conseguiremos isso se a matriz intelectual da qual falávamos antes estiver sólida. Se soubermos raciocinar em ordem e fazermos as perguntas que valem a pena.
É como uma corrida em duas vias: lá em cima no mundo o oceano de informação; aqui embaixo, nós, preparando-nos para a navegação transatlântica.
Escolas de tempo completo, faculdades no interior, ensino superior massificado. E, provavelmente, inglês desde o pré-escolar no ensino público. Porque o inglês não é idioma falado pelos ianques; é o idioma com o qual os chineses conversam com o mundo. Não podemos ficar de fora. Não podemos deixar nossas crianças de fora.
Essas são as ferramentas que nos habilitam a interagir com a explosão universal do conhecimento. Este mundo não simplifica a nossa vida: complica-a. Nos obriga a ir mais longe, a ir mais fundo na educação. Não há tarefa maior diante de nós.
O idealismo ao serviço do Estado
Queridos amigos, estamos em tempos eleitorais. Em benditos e malditos tempos eleitorais. Malditos, porque nos põe a brigar e a disputar corridas entre nós. Benditos, porque nos permitem a convivência civilizada. E mais uma vez benditos porque, com todas as suas imperfeições, nos fazem donos do nosso próprio destino. Aqui todos aprendemos que é preferível a pior democracia à melhor ditadura.
Nos tempos eleitorais, todos nos organizamos em grupos, frações e partidos, nos cercamos de técnicos e profissionais e desfilamos frente ao soberano. Há adrenalina e entusiasmo. Mas depois, alguém ganha e alguém perde. E isso não deveria ser um drama.
Com estes ou com aqueles, a democracia uruguaia seguirá seu caminho e irá encontrando as fórmulas rumo ao bem-estar. Seja qual for o lugar que nos toque, ali estaremos colocando a tarefa sobre os ombros. E estou seguro de que vocês também. A sociedade, o Estado e o Governo precisam de seus muitos talentos. E precisam mais ainda de sua atitude idealista. Nós que estamos aqui, entramos na política para servir, não para nos servir do Estado. A boa fé é a nossa única intransigência. Quase todo o resto é negociável. Muito obrigado por acompanharem-me.