Que a imagem de criança consegue comover o grande
público, todos já sabemos. Não é por outro motivo que a publicidade e as
produções visuais, incluindo aí o cinema, abusa da imagem das crianças quando
quer emocionar de forma fácil. Até os políticos se utilizam disso em período
eleitoral.
Recentemente vimos as imagens de crianças sírias mortas
em praias da Turquia e da Europa e uma, em especial, comoveu o mundo todo, a do
menino Aylan Curdi, de apenas 3 anos de idade. Mas essa não é a primeira vez
que o mundo se emociona com as imagens dos pequeninos. Na década de 90, a foto
de uma pequena e cadavérica menina sudanesa, acompanhada de perto por urubus,
chocou o mundo para a questão da fome e das guerras. Durante os anos 70, a
menina vietnamita Kim Phuc, com então 9 anos de idade, foi fotografada
desesperada, correndo nua, com visível dor causada pelas queimaduras da bomba
incendiária Napalm, jogada pelas forças estadunidenses.
No Brasil, as fotos das crianças órfãs de Canudos, na
Bahia, vítimas da guerra fratricida do final do século XIX, foram amplamente divulgadas
à época, o que sensibilizou a opinião pública. Também tivemos mais recentemente
o triste episódio da Chacina da Candelária, onde crianças e adolescentes foram
assassinados enquanto dormiam nas escadarias da Igreja de mesmo nome, no Rio de
Janeiro.
E quem não ouviu a famosa história do recém nascido
menino Jesus que teve que fugir para o Egito a fim de não ser assassinado pelo
exército de Herodes?
Os exemplos de tristes episódios envolvendo crianças não
faltam aqui e no mundo afora. E nada tem mudado substancialmente.
Além da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Crianças, a nossa Constituição, que também trata do mundo ideal, do dever ser,
aquele da poesia sonhada, declara em seu artigo 227 que crianças e adolescentes
têm prioridades nas mais diversas áreas. Para a legislação nacional,
aquele que tem até 12 anos incompletos é criança, enquanto adolescente é aquele
que tem entre 12 anos e 18 anos incompletos.
A esse grupo de pessoas com menos de 18 anos, segundo a
Constituição da República Brasileira, deveria ser assegurado recursos suficientes,
com o devido e necessário planejamento, para a inclusão social, educacional e
cultural, prioritariamente. Mas a realidade fática, aquela cruel, típica do
mundo real e retrato fiel dos nossos líderes políticos e empresariais e da
própria sociedade, é bem diferente.
Como todos sabem, as crianças e os adolescentes são
absoluta prioridade nas campanhas políticas. Todo político adora segurar
crianças no colo e se dizer protetor daqueles que serão um dia os trabalhadores
e a própria liderança do nosso país. Basta passar a época da campanha para se
perceber que crianças e adolescentes continuam nas esquinas e faróis de nossas
ruas, fora das escolas, sem acesso a bens culturais, sem qualquer dignidade,
com rostos sujos de carvão, barriga inflada por vermes ou, quando ainda de
tenra idade, abandonados nas esquinas, para que uma alma boa as adote.
Sob a ótica jurídica, particularmente da área
infracional, onde atuei por 12 anos, depara-se diuturnamente com pequenos
jovens, quase crianças, muitas vezes serem privados da liberdade, total ou
parcialmente, por atos sem gravidade. Devido ao convívio com jovens mais
experientes, essas quase crianças, depois de algum tempo, vêm a praticar e a reincidir
em atos infracionais graves. E não é necessário ser especialista para apontar
algumas das possíveis causas: a falta de estrutura familiar adequada, a absoluta
ausência de prazer em estudar e o materialismo consumista privado de valores
culturais.
Também já me deparei com grande massa de adolescentes
presos ilegalmente em masmorras, enquanto o Estado ineficiente não construía
unidades de internação.
Não precisa ser jurista para verificar que a prioridade
absoluta encontra-se redigida em nossa Constituição, e só. O que era para ser
um princípio norteador da administração pública e da própria sociedade
praticamente virou letra morta. Afinal, criança e adolescente menor de 16 anos
não votam.
Os números divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a
Infância – UNICEF assustam. Ou priorizamos a infância e a juventude ou o nosso
país continuará a não alcançar a educação de qualidade, a cultura para todos, o
desenvolvimento integrado de tecnologia, a diminuição das injustiças sociais e
o respeito à cidadania. Como se sabe, investir
em crianças e adolescentes é investir no futuro e na mudança de rumos do
próprio País. A falta de investimento significa, ao contrário, o abandono (da
infância e do próprio País).
Segundo o Fundo, a ausência de registros de nascimentos
no País, que era superior a 30% em 1995, caiu para índice inferior a 9% em
2008, mas continua alto no Norte e Nordeste do País.
O UNICEF aponta que 45% de nossas crianças vivem em
famílias pobres. E as crianças negras e do semiárido vivenciam um quadro ainda
mais grave, tendo 70% a mais de chance de viver na miséria, segundo o mesmo
organismo internacional.
Ainda de acordo com o UNICEF, o nosso país conseguiu
reduzir muito a mortalidade infantil, mas certifica que, aqui, ”as crianças
pobres têm mais do que o dobro de chance de morrer, em comparação às ricas, e
as negras, 50% a mais, em relação às brancas.” Ainda, mais de 60 mil crianças
brasileiras com menos de 1 ano são consideradas desnutridas, embora esse número
já seja reflexo de uma diminuição de mais de 60% havida nos últimos anos.
A questão escolar é muito pior, retratando a absoluta
falta de prioridade. Segundo o Fundo, o
Brasil possui mais de 535 mil crianças fora da escola, sendo que, desse total,
mais de 60% são de crianças negras. O mais estarrecedor, porém, é que apenas
40% das crianças conseguem terminar o ensino fundamental. A pesquisa ainda
revela que 64% das crianças pobres não
vão à escola durante a primeira infância. Assustado? Os números não param por
aí.
Na nossa sociedade que valoriza o aparecer, o ter e o
consumir, as crianças são estimuladas a cantar músicas com fundo sexual, a ser
modelos e a ganhar dinheiro. O resultado disso, em especial da erotização de
nossa infância, é de que, ao ano, nascem 300 mil bebês que são filhos e filhas
de mães adolescentes, que tem menos de 18 anos. Não são poucas as mães que
ainda são crianças.
Como se percebe, há que se dar prioridade às ações e
medidas garantidas na Constituição Federal. Só isso ajudará o Brasil a ser
menos injusto, menos sofrido e a ter um futuro mais próspero, não só na ótica
econômica, mas principalmente sob os aspectos cultural, educacional e tecnológico.
Chega das tristes imagens de crianças em fuga para
sobreviver e também daquelas afogadas, queimadas e morrendo de fome. O mundo,
em especial o Brasil, precisa das poesias sonhadas, e elas somente serão
realizadas se garantirmos o futuro das crianças e jovens, que, óbvia e
legalmente, deveria ser a nossa prioridade.