José Farhat
ICARABE
Logo após o ataque às Torres Gêmeas, em 9 de setembro de 2001, e até há poucos anos depois, quem ousasse interromper um jogo de gamão ou a baforada de um narguilé, em qualquer café de Beirute ou Clube de árabes em São Paulo e perguntasse quem foi o autor do atentado, é provável que ouvisse uma quase unânime resposta: “C.I.A. e Mossad”! Escrevemos um relato intitulado Onze de Setembro Sete Anos Depois, em 11/09/11, dando conta desta linha de pensamento árabe e também muçulmano, por andarem em paralelo.
Hoje, no entanto, já não se atribui este ato terrorista às duas agências de inteligência e sim a seus reais autores: al-Qaida e seus pupilos. Alguma insistência naquela errônea versão ainda ocorre, tal como existem pessoas que ainda consideram uma farsa televisiva a chegada de Neil Alden Armstrong à lua e seu pronunciamento em nome da humanidade.
A grande maioria de árabes e muçulmanos nunca apoiou a al-Qaida e sobretudo o crime que cometeu em território estadunidense, salvo as desprezíveis exceções de sempre que se manifestaram em 2001. Boa parte destes segue atualmente a mesma linha traçada por Peter L. Bergen, em seu livro The Longest War: The Enduring Conflict Between America and Al-Qaeda [A mais longa guerra: O conflito duradouro entre América e al-Qaida] no qual é analisado o sentido do que ocorreu naquele dia nefasto, mas também as consequências daquela agressão desumana, entender a guerra no Afeganistão, a ocupação do Iraque, as relações perturbadas dos Estados Unidos com o Paquistão, as perspectivas do relacionamento entre árabes e muçulmanos com o chamado Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, às vezes ocultados pela couraça da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), as torturas cometidas e os programas de remessa às escondidas de prisioneiros a outros países para que fossem cruelmente interrogados e às vezes até eliminados e a caça e a morte de Bin Laden.
Seguindo Bergen, analista de segurança nacional da Rede CNN e diretor de estudos de segurança da New American Foundation que coletou dados junto a autores e organizações, fizemos o mesmo, salvo por uma única exceção, procuramos trazer para este estudo a opinião de não árabes e não muçulmanos. A bem da verdade, Bergen chegou a ser criticado pelo establishment estadunidense, à falta de outra desculpa, por não ter dado maiores detalhes sobre o Afeganistão.
Aquilo que árabes e muçulmanos, inclusive na Tríplice Fronteira de Brasil, Argentina e Paraguai, em todo o Brasil, em países árabes ou de maioria muçulmana indagam não é diferente daquilo que fazem os próprios cidadãos estadunidenses. Atualmente em sua grande maioria eles se impressionam: uma década depois do 11/9 os Estados Unidos continuam lutando no Afeganistão e ainda não saíram do Iraque (e apesar de acordo firmado com o governo iraquiano estão procurando encontrar um meio, qualquer um, para lá ficar), tudo apesar de não ter ocorrido qualquer ataque terrorista desde então. O espanto maior é que foi gasto mais de US$ 1 trilhão nos combates, milhares de estadunidenses foram mortos e não há dúvida que Tio Sam inspirou o surgimento de oposição odiosa por parte de árabes e muçulmanos, onde quer que se encontrem.
Cada árabe ou muçulmano lamenta a perda de centenas de milhares de vidas dos seus, tão inocentes quanto os cerca de três milhares de vítimas das Torres Gêmeas. É-lhes dolorido constatarem o que pode ser considerado uma discriminação entre vítimas civis inocentes: “as deles e as nossas”. O mundo ouviu as palavras de George W. Bush no dia do ataque e duas vezes depois e seus discursos foram pronunciados em alto e bom som, o suficiente para que árabes e muçulmanos ouvissem que a reação estadunidense seria uma cruzada. Lamentam eles também as agressões que se seguiram ao 11/9, por parte de Estados Unidos e seus aliados em terras árabes ou muçulmanas. Sentem profundamente o apoio que é dado a Israel e os abusos que este comete contra os palestinos que são tanto árabes quanto muçulmanos em sua maioria, mas também cristãos. A reação ao tratamento dado por Israel aos lugares santos do Cristianismo e do Islã não se limitam ao estado hebreu e sim abrangem os Estados Unidos e seus aliados. Ninguém pode negar que foram, em última instância, os inúmeros adiamentos da decisão de ingresso da Turquia na União Europeia, que teve sua origem nas campanhas contra o Islã, a razão para levar o estado turco a desistir de sua candidatura ao ingresso na organização. Isto apesar de o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, mentiroso contumaz, dizer que era a favor da entrada do país de maioria muçulmana para o seio da organização europeia. Pode-se também considerar que a deterioração das relações entre Israel e Turquia tem em 11/9 suas origens remotas.
A própria criação do Instituto da Cultura Árabe no Brasil (Icarabe) tem indiretamente no episódio suas origens. Os ataques a Edward W. Saïd (1935-2003), palestino-estadunidense, teórico de literatura, professor de inglês e literatura comparada na Columbia University e defensor da causa palestina, recrudesceu com a implementação da “caça às bruxas” nos Estados Unidos após o 11/9. Saïd passou a ser atacado por sua origem e até ameaçada foi a sua cátedra na universidade. Os ataques repercutiram no Brasil e encorajaram a união de intelectuais em sua defesa. O apoio a Saïd foi ampliado para a causa palestina em particular e árabe em geral e à rica cultura árabe, o que consequentemente resultou na criação do Icarabe, que o tem como patrono.
Falamos do 11/9 e de algumas poucas de suas repercussões, mas não chegamos a definir o que é terrorismo, o motivo das cruzadas de Bush filho. Em artigo publicado em 02/09/2011, o professor de Ciência Política da Aligarth Muslim University, na Índia, M. Mohibul Haque publicou um artigo no Countercurrents.org intitulado Deconstruction of Discourse on Terrorism [Desconstrução discurso sobre terrorismo] no qual ele sublinha que o sentido do termo ‘terrorismo’, apesar de ser aquele que por mais longo tempo se discute em círculos acadêmicos e governamentais, tem “implicações perigosas [que] não são sentidas” e afirma ademais que “a ausência de uma definição objetiva de terrorismo é mais proposital do que acidental”. Haque acrescenta ainda: “a desonestidade da fraternidade acadêmica e o dúbio comportamento de governos nacionais são responsáveis por tais problemas”. Vindo para o nosso assunto, o professor da AMU chega diretamente ao âmago da questão ao afirmar: “Terrorismo é um ato político ou ideológico motivado por violência contra homens ou mulheres comuns. Ele pode ser cometido por indivíduo, grupo, organização ou estado. No entanto, infelizmente este discurso sobre terrorismo foi sequestrado por nações poderosas do mundo que nunca querem que seus atos de injustificável violência devam ser discutidos no contexto de terrorismo. Isto é muito evidente nos efeitos dos ataques terroristas de 11 de setembro contra os Estados Unidos. A assim chamada guerra global declarada contra o terror e que está sendo travada por Estados Unidos e um punhado de seus aliados tem tentado tapear que na presente circunstância o terrorismo é monopólio de não-estados. Assim, a matança de pessoas inocentes cidadãs de Afeganistão, Iraque, Somália e Kosovo por uma aliança imperialista não é absolutamente terrorismo.” Professor Haque conclui dizendo que “Terrorismo deve ser definido e determinado mais com base em atos cometidos que em atores envolvidos.”
Albert ‘Al’ Gore vice-presidente durante os oito anos de governo William ‘Bill’ Clinton, não é árabe e nem tampouco muçulmano, com sua insuspeita pena, escreveu um livro sob o título The Assault on Reason [O assalto à razão] no qual atacou George W. Bush dizendo que ele estava “fora de alcance da realidade” e ignorou “claros avisos” sobre a ameaça terrorista antes do 11/9 e que ele tornou os estadunidenses menos seguros “agitando vespeiros no Iraque” enquanto usava “a linguagem e a política do medo” a fim de “desviar a agenda pública sem atentar para a evidência, os fatos ou o interesse público”. Gore poderia até estar investindo contra Bush por razões eleitoreiras, o que é negado por todas as resenhas do livro às quais tive acesso, mas há um fato inegável a respeito do assunto. Bush não deu ouvidos aos “claros avisos” porque com ou sem o 11/9 seus planos eram outros e o ataque da al-Qaida serviram apenas de desculpa. Em artigo publicado em 15/09/2002, sob o título Planned Iraq 'Regime Change' Before Becoming President [Plano de ‘mudança de regime’ no Iraque antes de se tornar presidente], o jornalista Neil Mackay dá conta em artigo de 15/09/2002, que um resumo secreto de documento sobre a dominação global dos Estados Unidos revela que Bush filho e seu gabinete estavam planejando e premeditando atacar o Iraque a fim de assegurar uma ‘mudança de regime’ bem antes de quando este assumiu a presidência em janeiro de 2001. Quem revelou a existência do documento sobre a criação da ‘Global Pax Americana’ foi o jornal Sunday Herald que informa serem autores do resumo Richard ‘Dick’ Cheney (que se tornaria vice-presidente de Bush filho), Donald Rumsfeld (que seria nomeado secretário de defesa), Paul Wolfowitz (segundo de Rumsfeld), John ‘Jeb’ Bush (irmão de Bush filho e depois governador da Florida e que ajudaria o irmão a ser reeleito) e Lewis Libby (chefe de gabinete de Cheney). O documento original, sob o título de Rebuilding America’s Defense: Strategies, Forces And Resources For a New Century [Reconstruindo a defesa dos Estados Unidos: Estratégias, forças e recursos para um novo século] foi redigido em setembro de 2000 (um ano antes do 11/9) pelo neoconservador grupo chamado Project for the New American Century [Projeto para um novo século estadunidense]. Tanto isto é verdade que na reunião da cúpula governamental estadunidense, no dia dos acontecimentos do 11/9, ao saber do ocorrido Paul Wolfowitz gritou: “Foi Saddam Hussein, vamos atacar o Iraque!” e, em seguida, ao surgir a figura de Bin Ladin, decidiu-se pelo ataque ao Afeganistão em primeiro lugar.
Não precisa ser árabe ou muçulmano para começar desconfiando e depois ter certeza que tudo tinha sido planejado com antecedência e os ataques de 11/9 e suas vítimas foram tão somente usados e os países árabes e muçulmanos também. No documento Rebuilding America’s Defense (capítulo II Quatro missões essenciais - página 5) estão traçadas as metas: “A liderança mundial dos Estados Unidos e seu papel de garantidor da atual paz da grande potência, assenta na segurança do território estadunidense; na preservação de uma balança favorável de poder na Europa, no Oriente Médio e na região circunvizinha produtora de energia e Leste Asiático; e na estabilidade do sistema internacional de estados-nações relativo a terroristas, crime organizado e outros ‘não-estados’ atores.”
No dia 06/09/2011, por ocasião do décimo aniversário do 11/9 o britânico Oxford Research Group publicou um relatório sob o sugestivo título de A War Gone Badly Wrong – The War on Terror Ten Years On [Uma Guerra que seguiu muito errada – A Guerra contra o terror continua por dez anos] com reflexões sobre os erros catastróficos da ultima década e avaliação da resposta dos Estados Unidos e da coligação de seus parceiros e questiona se a resposta foi apropriada ou sábia ou se os resultados foram, até o momento, contraproducentes e indicam a necessidade de um totalmente novo paradigma de segurança.
O autor do relatório, o Professor Paul Rogers, diz: “Por ver os ataques como exigindo uma resposta militar importante - uma ‘guerra ao terror’ – atribuiu aos autores precisamente a atenção que eles buscavam e provou ser profundamente contra produtivo.” O relatório inclusive compara os objetivos originais de guerra das administrações Bush e Blair logo após os ataques e seus resultados atuais em termos de longevidade dos conflitos, os custos humanos, as implicações financeiras e os desenvolvimentos políticos.
Rogers resume os maiores resultados da ‘guerra ao terror’ quando diz: “Uma curta guerra no Afeganistão logo mais entra na sua segunda década, sete anos de guerra no Iraque ainda está por resultar numa paz duradoura e o Paquistão continua profundamente instável. Enquanto isto, grupos fracamente ligados ao movimento al-Qaida fazem progresso em Iêmen, Nigéria, Argélia e Corno da África.” É mais uma concordância, e bastante importante, à idéia que defendemos aqui e, mais ainda, o impacto destes acontecimentos certamente serão sentidos por muitas décadas futuras tanto no Mashriq quanto o Maghrib árabes quanto no sul e centro asiático muçulmanos.
Só se pode concordar também com Rogers quando aponta para um fato relevante que é o aumento significativo da influência do Irã na região e principalmente nos países palcos das ações estadunidenses: Afeganistão e Iraque e, nestes países, o Irã está livre para atuar.
Rogers vai além ao apontar para aquilo que um aniversário não está representando em termos de oportunidade para reflexões honestas já que planejadores políticos e militares estão se arriscando a repetir os erros da última década e diz: “Uma avaliação abrangente das guerras no Iraque e Afeganistão é muito necessária em maior profundidade” do que a atual atitude dos Estados Unidos e Reino Unido para se conseguir “aumentar a cautela em resposta muito rápida em circunstâncias difíceis com o uso de força militar.”
Dificilmente podem ser encontrados contestadores, em qualquer parte do mundo, na atualidade, às conclusões de Rogers quando diz: “Tornou-se cada vez mais claro na última década que os Estados Unidos e seus parceiros devem aprender com o evidente fracasso da ‘guerra ao terror’ passando a prestarem mais atenção às causas subjacentes aos conflitos, especialmente os fatores que motivem novos paramilitares a empreenderem ações extremas.
”Noam Chomsky, linguista, filósofo, ativista político estadunidense, professor de Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, comentou sobre o 11/9 em artigo datado de 06/09/2011 intitulado Dangers of American Empire and Why the US Continues to be Bin Laden's Best Ally [Perigos do império estadunidense e porque os E.U.A. continuam sendo o melhor aliado de Bin Ladin], no qual aponta que “Inúmeros analistas observam que apesar de Bin Ladin finalmente ter sido morto, ele ganhou alguns grandes sucessos em sua guerra contra os Estados Unidos.
”Continuando, Chomsky cita o jornalista especialista em Oriente Médio e Islã, Eric Margolis que escreveu: “Ele [Bin Ladin] repetidamente afirmou que a única forma de conduzir os Estados Unidos para fora do mundo islâmico e derrotar seu satrapismo é trazê-los para uma série de pequenas, mas dispendiosas guerras que finalmente irão à falência”.
Segundo Chomsky, ”Fazendo sangrar os Estados Unidos, primeiro sob George W. Bush e depois sob Barack Obama levou-os direto para a armadilha de Bin Ladin.” Chomsky prosseguiu com sua correta afirmação de que “um ataque maciço contra uma população muçulmana teria sido uma resposta às orações de Bin Ladin e seus associados e levaria os Estados Unidos e seus aliados a uma armadilha diabólica.” Foi por esta razão, aliada aos custos de mais uma frente de guerra, que fez com que os Estados Unidos fingissem não estar atuando na Líbia.
Chomsky, após demonstrar que os Estados Unidos, com seus ataques ao mundo islâmico foram os melhores aliados de Bin Ladin, indaga se não havia alternativa e aponta aquela que seria a mais óbvia: o movimento Jihadi Islâmico, crítico ferrenho de Bin Laden, poderia ter abandonado o movimento e minado todas as ações da al-Qaida e o crime contra a humanidade que foi cometido poderia ter sido tratado como crime com uma ação internacional para prender os responsáveis, mas como dissemos acima, os ataques já constavam dos planos até mesmo antes da posse de Bush filho e antes do 11/9 e sem ou com os ataques criminosos o que se queria mesmo era ocupar o Afeganistão e o Iraque e ousamos dizer: como passo inicial.
Bin Laden ainda viveu para ver um dos resultados das aventuras dos Estados Unidos e seus aliados nas guerras e interferências nos países árabes e muçulmanos que levaram diretamente para a crise econômica que começou em 2008 e só Allah sabe quando e se de fato terá solução.José Farhat é cientista político e diretor de relações nacionais e internacionais do Instituto da Cultura Árabe.
Formado em Ciências Políticas (USJ-Beirute) e Propaganda e Marketing (ESPM-São Paulo), tem cursos de extensão ou pós-graduação em: Comércio Exterior (FGV-São Paulo), Introdução à Teoria Política (PUC-São Paulo), Direito Internacional (PUC-SP) e cursou Filosofia no Collège Patriarcal Grec-Catholique (CPGC-Beirute). Domina os idiomas: Árabe, Francês, Inglês e Português e tem artigos publicados sobre Política Internacional, no Brasil e no Líbano. É ex-Diretor Executivo e atual Conselheiro do Conselho Superior de Administração da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira; foi Superintendente de Relações Internacionais da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e é seu atual membro do Conselho de Comércio e atual Diretor do Centro do Comércio do Estado de São Paulo. É diretor de Relações Nacionais e Internacionais do Instituto da Cultura Árabe. http://josefarhat.wordpress.com