É natural que tendências keynesianas apareçam na instabilidade. Mas elas precisam ir além do fortalecimento do Estado. É hora de reavaliarmos questões profundas, paradigmas energéticos e sociais, e dar espaço à terceira grande transição na nossa macro-história.
Ignacy Sachs
(25/01/2009)
(25/01/2009)
A crise dos anos trinta impulsionou a industrialização do Brasil e de vários países Latino-Americanos. Na impossibilidade de importar artigos industriais por falta absoluta de divisas, partiram para a substituição das importações. A crise que o mundo está vivendo neste começo de 2009 oferece uma nova janela de oportunidade para os países tropicais. Na realidade, estamos enfrentando duas crises conjugadas que remetem a escalas de tempo distintas.
Qual Estado para qual desenvolvimento?
Pela terceira vez nos últimos oitenta anos somos forçados a dar uma resposta nova à questão “qual Estado para qual desenvolvimento?”. Nos anos que se seguiram à crise de 1929, surgiram três respostas: o socialismo real, o nazismo e o New Deal rooseveltiano.
Os nazistas buscaram o pleno emprego na corrida armamentista, o que levou o mundo ao holocausto da segunda guerra mundial.
No período de pós-guerra, houve um consenso ao redor de três idéias mestras: o pleno emprego como objetivo central do desenvolvimento, a ser promovido por um Estado atuante na esfera da economia, a instituição de um Estado-providência (Welfare State) e o planejamento para evitar o desperdício desnecessário de recursos. Quando Von Hayek escreveu em 1944 o seu libelo contra o planejamento (The Road to Serfdom), ele era o dissidente.
A queda do muro de Wall Street em 2008 marca o fim da contra-reforma neoliberal. De repente, todo o mundo voltou a ser keynesiano, como se não houvesse diferenças entre o keynesianismo da esquerda e da direita
Estas idéias eram aceitas dos dois lados do que viria a ser a cortina de ferro, embora os dois sistemas em competição – o capitalismo reformado e o socialismo real – divergissem radicalmente sobre a maneira de pô-las em prática. Tivemos assim no Ocidente trinta anos de idade de ouro do capitalismo (S. Marglin). Forçado a competir com o socialismo real o capitalismo passou por várias reformas sociais, porém, o crescimento econômico dos anos 1945-1975 se caracterizou por uma incorporação predatória de recursos naturais e destruição ambiental. O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu no começo dos anos setenta e foi aceito pelas Nações Unidas na Conferência de Estocolmo em 1972.
A invasão da Checoslováquia em 1968 deu um golpe fatal na credibilidade da União Soviética e preparou o terreno para uma contra-reforma neoliberal, associada com os nomes de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha e Ronald Reagan nos Estados Unidos, e baseada no mito dos mercados que se auto-regulam. Em 1989, com a queda do muro de Berlim e a implosão da União Soviética, o pensamento neoliberal confortou a sua dominação, investindo contra o Estado-providência e tornando difícil a aplicação na prática dos preceitos de desenvolvimento sustentável.
A queda do muro de Wall Street em 2008 marca o fim da contra-reforma neoliberal. De repente, todo o mundo voltou a ser keynesiano, como se não houvesse diferenças fundamentais entre o keynesianismo da esquerda e da direita, como se o Estado atuante não tivesse que escolher entre investimento nas habitações populares ou na bomba H, entre o salvamento dos bancos e das vítimas da crise.
Os jogos estão abertos. Não sabemos ainda em que direção caminhará a intervenção dos Estados. Tampouco sabemos qual será o grau de coerência das respostas nacionais a esta crise mundial.
A grande transição
Mudando a escala de tempo, numa perspectiva macro-histórica que abrange a longa co-evolução da espécie humana com a biosfera, estamos enfrentando uma segunda crise: na falta de uma mudança drástica do nosso paradigma energético baseado no uso desenfreado de energias fósseis, corremos o risco de precipitar ainda neste século mudanças climáticas deletérias e possivelmente irreversíveis com consequências dramáticas para as nossas condições de vida.
Estamos no limiar da terceira grande transição na nossa macro-história. A primeira teve início há doze mil anos com a domesticação de espécies vegetais e animais, a sedentarização e, numa fase ulterior, a urbanização com todos os seus efeitos civilizatórios.
A segunda ocorreu a partir do fim do século XVII com a utilização em escala cada vez maior das energias fósseis – o carvão, seguido de petróleo e de gás – e foi marcada por uma extraordinária aceleração da história. No curto espaço de três séculos, ocorreram várias revoluções técnicas e industriais, a população mundial literalmente explodiu. No plano geopolítico assistimos à criação e descomposição de impérios coloniais, a duas guerras mundiais mortíferas, ao surgimento e ocaso do socialismo real.
O nosso problema atual é encerrar o mais cedo possível este breve interlúdio na história da humanidade saindo da era do petróleo e, se formos perspicazes, da era das energias fósseis e enfrentar ao mesmo tempo um outro desafio herdado do passado recente: as desigualdades sociais abissais, entre países e dentro deles, associadas a um déficit crônico e grave de oportunidades de trabalho decente (na definição da OIT).
É preciso compreender que o “jogo final do petróleo” (título de um livro recente de Amory Lovins) vai levar ainda decênios embora as reservas de petróleo de acesso razoavelmente fácil estejam se esgotando. Os geólogos anunciam que o pico de produção está próximo, o que faz supor que os preços de petróleo se manterão altos (em que pese a recente baixa conjuntural) tornando mais fácil a sua substituição por outras fontes de energia. Para onde vai nos levar esta terceira grande transição?
Novos paradigmas energéticos
Por importante que seja, não basta pensar unicamente na substituição das energias derivadas do petróleo por etanol e biodiesel como se se tratasse de uma panacéia. Devemos reexaminar antes de mais nada o perfil da demanda energética. Esta é uma questão difícil na medida em que afeta os padrões de consumo, os estilos de vida, a mobilidade de homens e de mercadorias, os sistemas de transporte e põe em debate os limites e a natureza assimétrica da globalização bem como do assim chamado comércio livre.
Como mostrou Amartya Sen, a fome no mundo não decorre da escassez de alimentos e sim do poder de compra insuficiente dos consumidores potenciais
Em segundo lugar vem o uso eficiente das diferentes energias, com enormes possibilidades de redução de consumo das energias no transporte (por exemplo os veículos ultraleves preconizados por Lovins), na calefação e na climatização (construção civil inteligente).
No que diz respeito às substituições, não devemos nos limitar apenas aos biocombustíveis líquidos, e sim lançar mão de todo o leque de energias renováveis (hídrica, solar, eólica, maremotriz, geotérmica, sem esquecer o carvão vegetal produzido em condições sustentáveis e a energia elétrica gerada por biomassa).
Os biocombustíveis líquidos têm sido o objeto de fortes controvérsias, colocando em competição por recursos potencialmente escassos – terras cultiváveis e água – os produtores de alimentos e dos biocombustíveis, ou, como disse Lester Brown, dois bilhões de estômagos vazios contra 800 milhões de donos de carros. O que podemos dizer a respeito?
Antes de mais nada como o mostrou cabalmente Amartya Sen, a fome no mundo não decorre da escassez de alimentos e sim do poder de compra insuficiente dos consumidores potenciais.
Em relação à competição por solos e água, a concorrência apontada pelos adversários dos biocombustíveis pode ser contornada à condição de superar os enfoques baseados na justaposição de mono-cadeias de produção, partindo-se para abordagens sistêmicas, na ocorrência para desenhar sistemas de produção conjunta de alimentos e bioenergia. Os solos mais férteis devem ser reservados à produção de alimentos, alocando sempre que possível a produção dos biocombustíveis para áreas degradadas. Outrossim, devemos redobrar os esforços para passar quanto antes à assim chamada segunda geração de biocombustíveis constituída por etanol celulósico extraído de resíduos vegetais e florestais, inclusive resíduos de produção de alimentos. Segundo tudo indica, a terceira geração dos biocombustíveis, que tampouco vai tardar, será baseada em micro-algas e algas criadas em meio marinho, portanto não terá nenhuma pegada ecológica na superfície terrestre.
Vários críticos incluem no balanço carbônico dos biocombustíveis as emissões de gazes a efeito estufa emitidos ao se proceder à mudança no uso de solos. O resultado é particularmente desastroso no caso de destruição por fogo de florestas virgens convertidas em plantações de dendê na Indonésia e Malásia. Trata-se de um argumento especioso. O desastre seria igual ao se converter a floresta nativa em arrozais ou pastos (como infelizmente é o caso na Amazônia).
Resumindo, o conflito potencial entre a segurança alimentar e a segurança energética obtida graças à expansão da produção dos biocombustíveis não parece inevitável.
Em compensação, devemos com a máxima urgência pôr em debate os modelos sociais dentro dos quais se fará esta expansão, já que devemos buscar soluções simultâneas aos dois desafios do século: a mitigação das mudanças climáticas e a superação das desigualdades sociais.
Rumo às biocivilizações do futuro
Na realidade, os alimentos e os biocombustíveis são dois entre vários bioprodutos obtidos a partir da biomassa graças à energia solar captada pela fotossíntese. Uma abordagem verdadeiramente sistêmica deve nos levar à análise dos limites e do potencial de biocivilizações baseadas no uso múltiplo das biomassas terrestres e aquáticas como alimentos humanos, ração para animais, adubos verdes, bioenergias, materiais de construção, fibras, plásticos e demais bioprodutos da química verde e das biorefinarias do futuro, fármacos e cosméticos. Não se trata em hipótese alguma de uma volta às grandes civilizações antigas do vegetal (Pierre Gourou) e sim de um pulo de gato (leapfrogging) para biocivilizações modernas porque dispomos hoje de conhecimentos que nos permitem alcançar altas produtividades primárias de biomassa e um leque extenso de produtos dela derivados. Este tema deveria nos interessar por três razões:
O uso generalizado de bioprodutos vai substituir os combustíveis fósseis bem além da sua substituição direta por biocombustíveis; os diferentes bioprodutos terão um conteúdo menor em energia fóssil em comparação aos que vão susbtituir;
Por outro lado, a organização social apropriada da produção de um grande volume de biomassas e da sua transformação em bioprodutos resultará numa oferta significativa de oportunidades de trabalho decente e num novo ciclo de desenvolvimento territorial mais equilibrado, evitando a acumulação de refugiados do campo nas favelas peri e intra-urbanas;
Por fim, os países tropicais desfrutam de uma dupla vantagem comparativa natural na promoção das biocivilizações – o sol e a biodiversidade – à condição de potencializá-la pela organização social apropriada da produção como já foi dito, pela pesquisa e pela cooperação científica e técnica Sul-Sul. Se souberem avançar nesta direção, tudo indica que poderão modificar significativamente a geo-economia e portanto, a geo-política mundial.
A saída por cima
A crise vai exigir medidas de caráter imediato para enfrentar os seus impactos sociais negativos mas estas urgências não deveriam distrair-nos da busca de soluções a médio termo que constitui uma saída por cima, uma mudança de rumo. Isto não se fará num dia, não devemos tampouco subestimar o poder de fogo das forças conservadoras, no Brasil e no mundo. A saída da era do petróleo vai levar decênios. As biocivilizações do futuro estão ainda por ser inventadas. O Brasil, pela sua dotação de recursos naturais, o seu potencial humano e o seu dispositivo de pesquisa, tem um papel fundamental a desempenhar. O primeiro passo poderia consistir em criar um fórum permanente de debate e de troca de experiências com os demais países tropicais empenhados na construção das biocivilizações do futuro. Precisamos dar respostas científicas à questão: até onde e a que ritmo podemos caminhar? Qual é a parcela da produtividade primária de biomassa já apropriada pelas nossas sociedades para consumo? O quanto é destruído por inadvertência ou desperdiçado por incompetência? Como reduzir a pegada ecológica? Para quando as bioenergias da terceira geração (produzidas em meio aquático)? O que esperar da fotossíntese artificial? Há razões para encarar com certo otimismo o potencial das biocivilizações. Porém nunca será demais repetí-lo: os modelos sociais da organização do processo produtivo constituem um elemento chave. Paradoxalmente, embora as margens de liberdade de que dispomos para definí-los pareçam grandes, a nossa capacidade de aproveitá-los tem sido altamente insatisfatória.