para o ICARABE
foto: ICARABE
Ao falar sobre o Oriente, os meios de comunicação de massa não têm dúvidas em destacar certas características que, do ponto de vista orientalista, estariam grudadas à pele de todos que habitam esse local imaginário. Me parece que nos últimos dias têm se destacado fundamentalmente três: a ausência de democracia, o terrorismo e o hiyab (código de vestimenta que cobre parte do corpo feminino). As duas primeiras têm merecido invasões, ameaças e embargos por parte das potências econômico-militares do Ocidente, enquanto a terceira, o hiyab, tem tido uma repercussão nos próprios países que crêem defender uma certa tradição própria e que não duvidam em chamar de ocidental.
Ao enfrentar o hiyab “em sua própria casa”, o Orientalismo assume uma nova posição defensiva, representando-o constantemente como uma ameaça. Basta ler os textos de Orina Fallaci, as reações desvairadas dos partidos conservadores europeus (e a fraqueza dos “progressistas”) que buscam proibir tudo aquilo que guarde relação com o Islã. E é no hiyab onde o Ocidente crê encontrar uma evidência da barbárie árabe e islâmica, toda vez que o corpo feminino é recluso no secreto, na obscuridade de um traje que contrasta com a sexualidade aberta das mulheres ocidentais. No hiyab se lê a dominação sobre as mulheres e submissão de seus corpos. Não seria, de nenhuma maneira, uma tarefa fácil desmentir isso, pelo contrário, bem parece que o hiyab é uma imposição de uma cultura marcada pelo patriarcalismo tradicional e que evidentemente é só a face exterior de uma discriminação aberta que impede as mulheres de atingirem um status de igualdade com os homens. A transumância feminina acordada no matrimônio, o escasso direito de propriedade das mulheres, a violência física e psicológica a que estão expostas por sua permanente dependência, entre outros elementos, nos mostra que é o cobertor desta situação.
Mas também é certo que uma cultura que se posiciona como ‘diferente’ da outra que constantemente trata de mostrar a irracionalidade e barbárie da sua contraparte, costuma querer tirar o argueiro dos olhos dos outros e não ver a trave nos seus próprios olhos. E, claro, em temas de desigualdade e desigualdade de gênero seria bastante útil enumerarmos carências e avanços de um e de outro lado para chegar a um empate técnico. Não se trata em absoluto disso, mas sim de compreender como duas sociedades têm enfrentado as relações de gênero e, em seu contato permanente, têm gerado reações baseadas em identidades imaginadas que na realidade estão presentes em todos eles. E estas identidades, por sua vez, se vêem forçadas precisamente pelo contato desigual entre os povos, de modo que, para compreender o gênero em sua versão ‘ocidental’ e ‘oriental’, seria interessante tentar se aproximar, ao menos, das relações políticas, econômicas e culturais que têm se dado através dos últimos duzentos anos entre ambos. Em primeiro lugar seria bom recordar que tanto o oriente islâmico, como o ocidente cristão provêm de uma série de raízes comuns, de espaços geográficos compartilhados e intercâmbios permanentes em todos os âmbitos.
O Islã nasce às margens do Império Bizantino e os países que compõem hoje este difuso conceito de árabes e islâmicos são herdeiros da ocupação grega e romana, precisamente aqueles impérios que o Ocidente considera elementos nucleares da sua cultura atual. Assim mesmo, as distintas correntes religiosas tiveram seu lugar de disputa teológica no mediterrâneo, onde é possível apreciar com maior força o intercâmbio cultural permanente entre Oriente e Ocidente.
Santo Agostinho e sua visão influente sobre a repressão corporal, que tanto marcou a cultura europeia, não era precisamente um romano, mas um filho de berberes africanos que pregou e combateu as heresias cristãs desde seu bispado em Hipona, isto é, na África.
O que pretendo dizer com isso, caso pareça que estou evitando tratar o tema a fundo, é que é impossível conceber o mundo mediterrâneo antigo e a Idade Média sem reconhecer um espaço de influência marcado pelos impérios que hoje dão sentido de pertencimento ao Ocidente. E é nesse espaço onde se exerceu permanentemente um tratamento desigual entre homens e mulheres, o que hoje o Ocidente trata de mostrar simplesmente como um fenômeno do passado e não como uma base cultural que compartilha com os árabes.
Agora, perfeitamente poderíamos dizer que esta desigualdade foi superada pelo Ocidente, enquanto que nos povos onde o Islã teve maior preponderância se reforçou uma relação de poder negativa entre homens e mulheres. Mas esta é uma visão simplista que oculta duas coisas fundamentais. A primeira delas é que no Ocidente as mulheres conseguiram avançar muito em matéria de igualdade de gênero, mas não o suficiente como para tratar o problema como algo superado. Muito pelo contrário, se considerarmos que um dos aspectos fundamentais para poder afirmar que se foi superado, em parte, as barreiras de gênero é a representação política que alcançam as mulheres nas sociedades ocidentais (o que evidentemente são espaços de tomada de decisões) o certo é que as diferenças não são muito grandes em nenhum lugar do mundo, salvo nos países escandinavos, onde a representação parlamentar feminina atual chega a cifras próximas a 40%.
Enquanto na Tunísia e no Iraque as mulheres ocupam 27,6% e 25,2% respectivamente as cadeiras da Câmara Baixa, na França e Itália as cifras são 18,9% e 21,3% [1] respectivamente. Seria apressado tirar conclusões gerais a partir de um fato pontual como este, mas também seria negligente se esquivar de um dado relevante. Não quero indicar com isso, de nenhuma maneira, que as mulheres muçulmanas sejam mais livres nem que os direitos alcançados pelas mulheres ocidentais sejam uma ilusão. É evidente que o feminismo conseguiu na Europa passos de grande magnitude, mas também é bom recordar que estas foram lutas cujas conquistas foram parciais e se seguem enfrentando até os nossos dias com o conservadorismo da Igreja Católica nos países onde esta ainda tem uma influência política.
Por outro lado, a maioria destes logros ocorreram durante o século XX, isto é, a maioria tem menos de cem anos e formam parte das recordações recentes das gerações atuais. E isto se enlaça com o segundo elemento que queria destacar. Que a construção da desigualdade de gênero no Oriente está fortemente marcada pelo imperialismo contemporâneo e que os logros obtidos pelo feminismo no Ocidente foram canalizados pela industrialização, a formação dos movimentos de trabalhadores, o acesso à universidade e à educação, todos eles fenômenos próprios de um capitalismo que só se deu no Ocidente, pois no Oriente adquiriu características muito diferentes. Para o mundo árabe e islâmico, o capitalismo não continha somente como princípio a venda da força de trabalho, mas também, ao mesmo tempo, era sinônimo de colonização.
Enquanto os Estados ocidentais exportavam o petróleo do Golfo Arábico, ocupavam militarmente suas populações, criavam dinastias reinantes que fossem incapazes de discutir seus interessas na zona e lhes davam, com o tempo, uma independência que não alcançava o que pretendiam: o controle de seus recursos naturais.
Ocidente e Oriente nunca estiveram separados, mas sim o ocidente assolou o Oriente e o reduziu a uma província subdesenvolvida. Enquanto as monarquias da Europa perdiam todo o poder efetivo na política, e a democracia representativa era vista no Ocidente como o único sistema viável de governo, estes mesmos países protegeram as monarquias ditatoriais de todo o mundo islâmico. Daí é que surgiram os movimentos sociais cujo objetivo é reforçar a tradição frente ao que vêem como perigo para seus povos, tal como os conservadores europeus vêem com receio os imigrantes africanos. A luta contra o imperialismo ocidental se afirma em determinados contextos, em um retorno à grandeza islâmica e isso ocorre por meio de um olhar para a tradição, negando uma concepção do mundo aberta como potencia e possibilidade, e incorporando a desigualdade de gênero como um bastião frente a uma cultura Ocidental que rapidamente passou da liberação do corpo à venda massiva do corpo fragmentado das mulheres. A propósito daquilo, uma mulher muçulmana expressou, não sem argumentos, que é mais livre a mulher com o véu do que aquela submetida ao manequim de número 36 [2].
Fátima Mernissi tratou inclusive de compreender o significado histórico do hiyab, que havia sido impulsionado pelo Alcorão para proteger as mulheres de agressões sexuais masculinas. E claro, hoje deveria ser possível, sob a mesma lupa ocidental que tem como lente a diversidade, admitir o hiyab como uma prova a mais. Outros, desde o Islã defendem que “…existem mulheres que usam o hiyab por crerem que se trata de um requisito de sua religião, ou por afirmar a tradição, ou como um signo de sua espiritualidade, ou por imposição de suas famílias, ou como signo de seu pertencimento a uma comunidade, ou simplesmente por coqueteria. Ou por outra coisa, ou por tudo isso ao mesmo tempo.” [3].
Efetivamente, podem existir múltiplas razões pelas quais alguém decide usar uma determinada vestimenta e dificilmente poderia imaginar-se com um vestuário que se construa fora das relações de poder que lhe dão sentido e forma. E é necessário compreender também a resistência cultural que significa o hiyab frente à opressão que têm vivido os países islâmicos por parte do Ocidente capitalista.
Muitas mulheres cobrem suas cabeças por responder ao chamado da tradição a resistir e supostamente muitas também porque em suas famílias são chamadas a resistir. Tanto no Ocidente como Oriente existem movimentos que buscam permanentemente reificar a realidade e combater tudo aquilo que consideram perigoso para sua fórmula de identidade estática. Precisamente a fórmula Oriente-Ocidente contém já em si mesma a rigidez de uma visão tradicional. Articular, portanto, uma resistência capaz de romper com os padrões da tradição somente é possível quando existe a potência de usar ou não usar o hiyab.
Mauricio Amar é sociólogo, Mestre em Estudos de Gênero e Cultura da Universidade do Chile.
Este artigo foi publicado na Revista Hoja de Ruta Nº 32 - Los árabes y la sexualidad mayo de 2010
Tradução: Ana Maria Barbour.
NOTAS
[1] Ver Unión Interparlamentaria, Women
in Nacional Parliaments, URL disponível em: http://www.ipu.org/wmne/classif.htm. Consultado el 20 de mayo de 2010.
[2] Ver Web Islam. URL disponível em:http://www.webislam.com/?idt=16008. Consultado el 20 de mayo de 2010.
[3] Abdennur Prado, ¿Es el hiyab un símbolo de discriminación de la mujer?, em El País de España, 21 de abril de 2010. URL disponível em: http://www.elpais.com/articulo/opinion/
hiyab/simbolo/discriminacion/mujer/elpepuopi/20100421elpepuopi_1/Tes. Consultado el 20 de mayo de 2010