Luís Farinha
Depois de em 1932 se ter tornado chefe do Governo, Salazar e os salazaristas estabelecem, no Verão de 1933, a futura arquitetura institucional do Estado Novo Corporativo. A partir do final deste ano, um ano chave da instauração do Estado Novo, a luta antifascista realizava-se nas mais sufocantes condições de clandestinidade e repressão. Artigo de Luís Farinha, historiador.
Entre 1924 e 1933, a esquerda e a direita combateram-se em Portugal e no Império até à morte: depois de 16 anos de regime republicano e uma Guerra Mundial brutalmente destruidora, a esquerda ensaiava os primeiros passos de uma democracia social e de um partido de massas moderno, e a direita uma Ditadura política, “ordeira” e antidemocrática, de carácter corporativista e fascizante.
Nos derradeiros anos da República, o “centrão”, herdeiro do projeto revolucionário de 5 de Outubro de 1910, “reinava” mas não governava: detinha o poder a todo o custo, em função de uma hegemonia que lhe fora atribuída pela história e pela capacidade de adaptação política a todas as circunstâncias. Do seu seio foram saindo todas as tendências, à esquerda e à direita, frágeis e inconsistentes eleitoralmente sempre que procuravam autonomizar-se e concorrer com o partido histórico. A direita democrática, sempre muito frágil, balanceou-se, nos últimos anos do regime, entre o jogo democrático ou a interrupção da democracia – propunha “a boa ditadura contra os maus políticos”. Com o agudizar da crise do regime, foi engrossando o campo da direita anti-democrática, empenhada na subversão da República.
O golpe de estado de 28 de Maio de 1926 foi o momento de chegada ao poder de uma frente política e militar subversiva, onde cabiam quase todas as tendências que se opunham ao Partido Democrático, chefiado por António Maria da Silva. Uns, pretendiam apenas o derrube do governo, outros a sua substituição por uma “ditadura temporária e regeneradora”; mas, os mais decididos estavam empenhados na eternização de uma ditadura que abrisse caminho a um poder executivo forte, à inutilização do parlamento, dos partidos e dos sindicatos e, in extremis, à instauração de um regime de exceção, com perda de garantias e direitos fundamentais. Tacitamente, todos aceitaram que a natureza do novo regime havia de pender para o lado de quem tivesse mais força militar.
A instrumentalização política da instituição militar e a militarização do poder político nos anos pós –guerra – como, aliás, acontecera por toda a Europa -, facilitou a disputa do poder por fações político-militares antagónicas e irredutíveis. Entre 1924 e 1933 desenrolou-se, no país, uma guerra civil larvar e intermitente.
A esquerda democrata-social ensaiou todas as soluções, mas perdeu pela força das armas. A Revolução de Fevereiro de 1927 - a “Revolução da Semana Sangrenta” - foi a última oportunidade dos republicanos democratas. Centenas de feridos e mortos, alguns milhares de deportados, encarcerados e exilados, asseguraram à Situação uma posição de domínio que lhe permitiu expurgar todas as instituições liberais e republicanas: sindicatos, partidos e imprensa estiveram entre os primeiros a serem decapitados. A partir de 1930, a direita expulsou do seu seio todos os democratas, e federou, em torno de Oliveira Salazar, com apoio de um sector maioritário dos militares, todas as direitas da direita. Recuperou as doutrinas ultranacionalistas e tradicionalistas e recorreu às instâncias conservadoras de poder para proceder a um novo enquadramento político-institucional e à repressão para aniquilar os elementos mais intransigentes do operariado urbano, do funcionalismo, do meio estudantil e dos setores militares mais republicanizados.
Depois de em 1932 se ter tornado chefe do Governo, Salazar e os salazaristas estabelecem, no Verão de 1933, a futura arquitetura institucional do Estado Novo Corporativo.
A oposição reviralhista republicana lançaria nesse mesmo ano os seus derradeiros argumentos, ao mesmo tempo que era definitivamente decapitada. A Polícia de Defesa Política e Social conseguiu desarticular, no início do ano de 1933, a principal rede de resistência, a atuar entre o centro e o norte do país. No Porto, foi preso o seu líder histórico – o capitão Nuno Cruz. Na mesma altura são presos dezenas de reviralhistas e apreendida documentação comprometedora e armamento abundante, muito dele vindo de Espanha, por efeito do apoio da II República aos exilados portugueses aí residentes. Pouco depois, a polícia desarticulava uma poderosa rede civil e militar, composta de antigos sindicalistas e funcionários públicos, que atuava no triângulo militar de Entroncamento/Tancos/Abrantes. Em Maio daquele ano, é apreendido em Lisboa um dos principais depósitos de armamento, composto por milhares de granadas, morteiros, armas diversas e cartuchos.
Apesar de derrotado no interior, o Reviralho reativou a sua atividade política no exílio galego. Idos de vários pontos, congregaram-se em Vigo Esquerdistas, Democráticos, Liberais e Anarquistas e constituíram uma “Frente Única” em torno de um “Projeto de Plataforma de Frente Única das Forças Populares Motoras da Democracia”. Era um programa que respondia às exigências crescentes da situação e aos programas de comunistas e anarquistas. Previa uma organização política popular, em que uma “Câmara Técnica” seria constituída por representantes dos sindicatos, com voto consultivo, a laicização completa dos serviços de saúde e ensino e a nacionalização de um conjunto de sectores fundamentais da economia, entre eles os caminhos-de-ferro e os tabacos, bem como a municipalização dos latifúndios.
A desagregação das forças revolucionárias era, porém, o mais natural, nas condições de dispersão e exiguidade dos meios reunidos. Em 19 de Novembro, são deportados para o Forte de S. João Batista de Angra do Heroísmo os “150 prisioneiros mais perigosos”, acrescentando desde modo o número de alguns milhares já existentes nas prisões atlânticas, da Madeira a Timor.
A partir deste final do ano de 1933, um ano chave da instauração do Estado Novo, a luta antifascista – mais unitária que em períodos anteriores –, realizava-se nas mais sufocantes condições de clandestinidade e repressão.
Desses tempos de luta contra a fascização dos sindicatos vem este grito exaltante do reviralhista Jaime Cortesão, sobre o heroísmo do anarquista Jaime Rebelo, um pescador setubalense.
“- Quem é este homem sombrio
Duro rosto, claro olhar,
Que cerra os dentes e a boca
Como quem não quer falar?
- Esse é o Jaime Rebelo,
Pescador, homem do mar.
Se quisesse abrir a boca,
Tinha muito que contar.
Ora ouvireis camaradas,
Uma História de pasmar.
Passava já de ano e dia,
E outro vinha de passar,
E o Rebelo não cansava,
De dar guerra ao Salazar.
De dia tinha o mar alto,
De noite a luta bravia,
Pois só ama a Liberdade,
Quem dá guerra à tirania.
Passava já de ano e dia…
Mas um dia, por traição,
Caiu nas mãos dos esbirros
E foi levado à prisão.
Algemas de aço nos pulsos,
Vá de insultos ao entrar,
Palavra puxa palavra,
Começaram de falar.
- Quanto sabes, seja a bem,
Seja a mal hás-de contá-lo.
- Não sou traidor, nem perjuro;
Sou homem de fé, não falo!
- Fala: ou terás o degredo,
Ou a morte a fio de espada.
- Mais vale morrer com honra,
Do que vida desonrada!
- A ver se falas ou não,
Quanto posto na tortura.
- Que importam duros tormentos,
Quando a vontade é mais dura?!
Geme o peso atado ao potro
Já tinha o corpo a sangrar,
Já tinha os membros torcidos
E os tormentos a apertar,
Então o Jaime Rebelo,
Louco de dor, a arquejar,
Juntou as últimas forças
Para não ter que falar.
- Antes que fale, emudeça! –
Põe-se a gritar com a voz rouca,
E, cerce, duma dentada,
Cortou a língua na boca.
A turba vil dos esbirros
Ficou, na frente, assombrada,
Já da boca não saía
Mais que espuma ensanguentada!
Salazar, cuida que o Povo
Te suporta quando cala?
Ninguém te condena mais
Que aquela boca sem fala!
Fantasma da sua dor,
Ainda hoje custa a vê-lo;
A angústia daquelas horas
Não deixa o Jaime Rebelo.
Pescador que se fez homem
Ao vento livre do Mar,
Traz sempre aquela visão
Na sombra dura do olhar,
Sempre de boca apertada,
Como quem não quer falar.
Luís Farinha, historiador, Investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC) da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.