Logo após a aprovação de uma lei brasileira inédita que tratava da questão dos refugiados, eu e uma colega, a Dra. Mônica Eguchi, sob o respaldo da Dra. Flávia Piovesan, escrevemos um grande artigo sobre o tema, envolvendo os tratados internacionais, a Constituição Federal e a lei ordinária brasileira, inclusive. Era uma obra até então inédita. Vale a pena rever...
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CONVENÇÃO RELATIVA AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS - PROTOCOLO SOBRE O ESTATUTO DOS REFUGIADOS
Cyro Saadeh
Mônica Mayumi Eguchi (Mestre em Direito pela PUC-SP e Professora de Direito Penal da APMBB).
I - INTRODUÇÃO
Homens, mulheres e crianças, a cada instante, são obrigados a fugir do lugar onde residem habitualmente, com receio de perderem a própria vida, a segurança e a liberdade em razão de guerras, perseguições, discriminações, intolerâncias etc. Estas pessoas, vítimas de violação de direitos humanos, são os refugiados.
Os refugiados pertencem a todas as raças e religiões e encontramo-los em todas as partes do mundo. Podemos citar Albert Einsten, Sigmund Freud, Felipe Gonzalez Marquez, Mario Soares, Corazon Aquino, Mikhail Baryshnikov, Rudolf Nureyev, Marlene Dietrich, Aleksandr Solzhenitsyn, Bertolt Brecht, Sun Yat-Sen, Richard Wagner, Victor Hugo, Giuseppe Garibaldi, Vladimir Nabokov e Marc Chagall como os refugiados mais conhecidos.(1)
Até a década de 50, seguramente, a maioria dos refugiados era europeus, o que de certo modo justificava a reserva geográfica existente nos Instrumentos Internacionais. Atualmente, no entanto, a maioria é composta principalmente de africanos e asiáticos, dos quais 80% são mulheres e crianças.(2)
Muitos são os motivos de hoje existir um grande número de refugiados quais sejam, questões territoriais (África e Oriente Médio), questões econômicas (Albânia), questões religiosas (Afeganistão) e étnicas (Repúblicas da ex-Iugoslávia).
Normalmente, os refugiados têm de abandonar tudo (a casa, os bens, a família e o país) em troca de um futuro incerto numa terra desconhecida.(3)
Os refugiados, como se percebe, sofrem freqüentes e graves violações de direitos humanos, sendo esta situação uma das grandes tragédias do nosso tempo, que merece um estudo destacado na violação aos direitos da pessoa humana.
II - BREVE HISTÓRICO
Desde os primórdios da civilização humana, pessoas eram excluídas e sofriam perseguições em razão de condições várias.
Na Grécia e em Roma antigas, a proteção (em razão da hospitalidade) era praticada nos templos. O cristianismo também concedia proteção nas igrejas, inclusive a criminosos que não fossem de alta periculosidade. Na Idade Média, os senhores feudais também davam acolhida às pessoas que entendiam que fossem merecedoras de proteção.(4)
A proteção na sociedade internacional organizada teve origem em 1921, quando foi criado o Alto Comissariado para os Refugiados Russos, em decorrência dos apátridas surgidos pela queda do Império Otomano e pela Revolução Russa. A Liga das Nações decidiu nomear o Dr. Fridtjof Nansen (1861-1930), então representante da Noruega, a qual desde 1919 vinha conduzindo a repatriação de prisioneiros de guerra em nome desse Organismo. O Primeiro Alto-Comissário conseguiu assegurar o fornecimento de assistência aos refugiados por parte de alguns governos e agências voluntárias, foi também idealizador do famoso Passaporte Nansen, documento que pôde ser utilizado, antes de tudo, como um Certificado de Identidade, e depois, como peça que permitia ao titular retornar ao país que o havia expedido. Pelo extraordinário trabalho realizado, concedeu-se a Nansen, em 1923, o Prêmio Nobel da Paz.(5)
O surgimento do nacional-socialismo na Alemanha, a partir de 1933, gerou novos sujeitos de refúgio: judeus não-arianos e opositores ao regime. A Liga das Nações criou, então, uma administração ad hoc sediada em Londres, encarregada de assegurar aos perseguidos um reassentamento na Europa ou além-mar. A Convenção de Genebra de 1933, que foi um dos primeiros instrumentos jurídicos internacionais relativos a refugiados, dava às pessoas sob sua competência uma condição similar a de estrangeiros privilegiados.(6)
Em 1938, com sede em Londres, é criado o Comitê Inter-governamental para os Refugiados (Intergovernamental Commitee on Refugees - IGCR), cuja finalidade era efetuar reassentamentos. A partir de 1943 suas atividades foram compartilhadas com um organismo criado pelos aliados, a Administração das Nações Unidas de Socorro e Re-construção (United Nations Relief and Rehabilitation Administration - UNRRA), que visava basicamente a repatriar as vítimas da guerra dos territórios ocupados.
A Administração das Nações Unidas de Socorro e Reconstrução (UNRRA) e o Comitê Intergovernamental foram substituídos, em 1947, pela Organização Internacional para os Refugiados (OIR), extinta em 1951, sendo que o Brasil foi um dos poucos países latino-americanos que dela fez parte.
Em 14.7.50, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução n. 428A (V) contendo o Estatuto do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que entrou em vigor em 1º.1.51. O artigo 1º do Estatuto estabelece que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) "assumirá a função de proporcionar proteção internacional aos refugiados que reunam as condições previstas no presente Estatuto, e de buscar soluções permanentes para o problema dos refugiados, ajudando os governos e, dependendo da aprovação dos governos interessados, às organizações privadas a facilitar a repatriação voluntária de tais refugiados, ou a sua absorção nas novas comunidades nacionais."
Em 28.7.51 foi aprovada pela Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, convocada pela Resolução n. 429(V) da Assembléia Geral das Nações Unidas, a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados.
A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 é considerada a Carta Magna do instituto ao estabelecer, em caráter universal, o conceito de refugiado bem como seus direitos e deveres; entretanto, definiu o termo "refugiado" de forma limitada temporal e geograficamente.
Conforme nos ensina Jaime Ruiz de Santiago, "isso significa que os refugiados somente serão assim reconhecidos, se o forem em decorrência de episódios ocorridos antes dessa precisa data: 1º de janeiro de 1951. Desse modo, tal definição seria aplicada a muitos milhares de pessoas mas, com o decorrer do tempo, a definição da Convenção se tornaria inoperante."(7)
Em razão dessas limitações temporal e geográfica foi estabelecido, em 31.1.67, o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados com a finalidade de ampliar o alcance da definição de refugiado. Tais limitações foram suprimidas pelo artigo 1º, item II, do referido instrumento, cabendo a cada Estado-Parte formular ou não reservas.
O Brasil aderiu à Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, ratificando-a, tendo sido promulgado o Decreto n. 50.215, de 28.1.1961, publicado no Diário Oficial da União em 30.1.1961, que tornou público o tratado a todos os brasileiros.
A adesão do Brasil não foi absoluta, tendo sido formuladas reservas geográfica e temporal, bem como limitações dos direitos de associação (art. 15) e de labor remunerado (art. 17).
O Protocolo de 1967 somente foi aderido pelo Brasil em 1972, quando, então, foi derrubada a reserva temporal. Persistiam, no entanto, as reservas geográficas e as dos artigos 15 e 17, que desapareceram apenas com o advento de dois Decretos Presidenciais. O primeiro, de 19.12.1989, derrubou a reserva geográfica, e o segundo, de 3.12.1990, com o n. 99.757, publicado no Diário Oficial da União de 4.12.1990, derrubou as reservas aos artigos 15 e 17, em consonância com os princípios Constitucionais estatuídos nos artigos 5º, incisos XIII e XVII, e 7º, inciso IV.
Sendo o Brasil signatário desses instrumentos internacionais, está obrigado a cumprir aquilo que aderiu por força do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição da República.
Ademais, o cumprimento dessas normas internacionais impõe-se, porque se trata de ato jurídico perfeito e, por isso, produz efeitos em relação às partes contratantes (inter partes).
Ressalte-se que os pressupostos de validade para os tratados são em número de quatro, quais sejam, capacidade das partes, competência dos representantes, consentimento mútuo e objeto lícito e possível.(8)
Deve ser observado que se o Brasil ou qualquer Estado-signatário não quisesse mais fazer parte de um Tratado por tempo indeterminado, poderia servir-se da denúncia total, ou seja, da comunicação da não pretensão de participar, não se admitindo a figura da denúncia parcial.
Impende destacar que o Brasil não ofereceu denúncia a qualquer dos instrumentos supra mencionados.
A constitucionalista Flávia Piovesan, em seu brilhante magistério, nos ensina que o Estado brasileiro deve elaborar todas as disposições de direito interno que sejam necessárias para tornar efetivos os direitos e liberdades enunciados nos Tratados de que o Brasil é parte. A omissão estatal viola obrigação jurídica assumida no âmbito internacional, importando em responsabilização do Estado.(9)
O Brasil, portanto, está obrigado ao que se comprometera, tendo, inclusive, editado a Lei n. 9.474, de 22.7.97(10), a qual define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados.
III - DA RELAÇÃO DO DIREITO DOS REFUGIADOS
COM OS DIREITOS HUMANOS
A doutrina clássica aduz que há três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana: Direitos Humanos, Direito Humanitário e Direito dos Refugiados.
Hodiernamente, a visão compartimentalizada das três grandes vertentes da proteção da pessoa humana encontra-se definitivamente superada. Entende-se que deve haver a aplicação simultânea ou concomitante dessas normas de proteção tendo em vista a identidade do propósito comum de proteção do ser humano em todas e quaisquer circunstâncias.(11)
O movimento do direito internacional dos direitos humanos, segundo Richard B. Bilder, "é baseado na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e a responsabilidade de protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações. O Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas, procedimentos e instituições internacionais desenvolvidos para implementar esta concepção e promover o respeito dos direitos humanos em todos os países, no âmbito mundial..."(12)
O Direito Internacional Humanitário (Direito de Haia, Direito de Genebra, Direito de Nova York) é o corpo de normas jurídicas de origem convencional ou consuetudinária, especificamente aplicável aos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, evitando que sejam afetados as pessoas e os bens legalmente protegidos. As quatro Convenções de Genebra de 1949, ainda em vigor e ratificadas pelo Brasil desde 1956, e os dois Protocolos de 1977 Adicionais às Convenções de Genebra, ratificada pelo Brasil em 1992, tratam da matéria.(13)
Já o Direito Internacional dos Refugiados tem como objetivo precípuo restabelecer os direitos humanos mínimos dos indivíduos ao saírem de seu meio social.
Indivisibilidade, individualidade, interdependência, inalienabilidade e universalidade são características dos direitos humanos. Como o direito dos refugiados se entrelaça, complementa e converge com os direitos humanos, as características citadas se aplicam perfeitamente ao direito dos refugiados.
O problema dos refugiados tem como causas principais as violações dos direitos humanos, os quais deveriam e devem ser respeitados antes, durante e depois do processo de solicitação de asilo ou refúgio.(14)
No plano internacional, tem-se questionado tanto a natureza jurídica como o alcance de obrigações assumidas pelos Estados-partes de determinados Pactos, Convenções e Tratados internacionais.
As quatro Convenções de Genebra, de 1949, e o Protocolo Adicional I, de 1977, que fazem referência ao Direito Internacional Humanitário, determinam que as Altas Partes Contratantes se comprometem a respeitar e a fazer respeitar, em todas as circunstâncias, aqueles tratados humanitários, ou seja, o Estado-Parte deve respeitar, por si, por seus agentes e jurisdicionados, as regras de direito humanitário. E a Corte de Haia reconheceu judicialmente, em decisão proferida aos 27.6.1986, que as Nações têm a obrigação de respeitar e fazer respeitar o direito humanitário, como, por exemplo, no famoso caso "Nicarágua versus Estados Unidos".(15)
O dever de respeitar e fazer respeitar aplica-se também ao direito dos refugiados, aos direitos humanos como um todo, posto que se os jurisdicionados de determinado Estado não respeitarem as normas de direitos humanos e este quedar-se inerte, na verdade, quem estará desrespeitando e violando direitos elementares, no âmbito internacional, é o próprio Estado.
É tão evidente a convergência entre o direito internacional dos refugiados e a proteção internacional dos direitos humanos que as conclusões sobre a Proteção Internacional dos Refugiados, aprovadas pelo Comitê Executivo do Programa do ACNUR (3/1977, 11/1978, 25/1982, 41/1986 e 55/1989), manifestam preocupação com a violação dos direitos humanos dos refugiados(16). No tocante a tais violações, as maiores preocupações são com o acesso à justiça, o princípio da não-discriminação e a vigência dos direitos civis fundamentais — reconhecidos internacionalmente, em particular os enunciados na Declaração Universal de Direitos Humanos.
A Lei n. 9.474/97 e a Declaração de Cartagena (Terceira Conclusão) prevêem a violação maciça dos direitos humanos como caracterizadora da situação de refugiado(17), o que demonstra o vínculo claríssimo entre o direito dos refugiados e os direito humanos.
A Declaração de San José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas, de 1994, reconhece expressamente, em seu preâmbulo e nas conclusões 3ª e 16ª, as convergências entre os sistemas de proteção da pessoa humana consagrados no direito internacional dos refugiados e no direito internacional dos direitos humanos, ambos com caráter complementar(18). Citada declaração reconhece que a violação dos direitos humanos é a causa mais freqüente dos deslocamentos humanos e de refúgio, sendo que a proteção de tais direitos é a melhor medida para a prevenção das conseqüências (conflitos, êxodos de refugiados e crises humanitárias). O mesmo entendimento é o do documento da Conferência Internacional sobre Refugiados Centroamericanos (CIREFCA), de 1989.
A não garantia ou assecurabilidade de direitos elementares humanos acarreta o refúgio e o deslocamento interno.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) entende que só se pode conceber o direito dos refugiados no âmbito dos direitos humanos, de que é um ramo especializado(19). E o próprio órgão entende que se houver respeito aos direitos humanos no país de origem inexistirá deslocamento interno.
O princípio da não-devolução visa justamente proteger o refugiado de tortura ou a maus-tratos ou a penas desumanas ou degradantes. Assim, princípios de direito dos refugiados são comuns aos do direitos humanos, havendo aí mais uma nítida interligação.
Há aproximação, portanto, nos planos conceitual, normativo, hermenêutico e operacional, como anota o Juiz da Corte Interamericana Antônio Augusto Cançado Trindade(20).
Jaime Ruiz de Santiago anota que "o atual direito internacional concede à pessoa humana uma proteção jurídica que se manifesta, em especial, na proibição da escravidão e do trabalho forçado, na proteção das minorias, na defesa dos direitos humanos fundamentais e na proteção dos refugiados"(21). Conclui o citado jurista que os direitos humanos protegidos são inerentes à pessoa humana e não derivam do Estado(22).
O referido doutrinador entende, ainda, que "o direito internacional dos Refugiados está intimamente vinculado ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e ao Direito Internacional Humanitário, sobretudo com a normativa internacional sobre Direito Humanos, na medida em que esta se aplica a toda pessoa humana, independentemente de sua condição ou origem"(23) e que os direitos humanos e os dos refugiados encontram-se em três momentos fundamentais, quais sejam, anterior ao refúgio, no momento em que se solicita refúgio e na solução do problema (repatriação voluntária, integração local e reassentamento).
O Direito Internacional dos Direitos Humanos enseja proteção, em nível universal e regional, a todo ser humano. O Direito Internacional dos Refugiados e o Direito Internacional Humanitário, ao contrário, não se aplicam a todos os seres humanos, nem a todas as circunstâncias, pois sua operatividade requer a existência de circunstâncias especiais.
O Direito Internacional Humanitário pressupõe a existência de um conflito bélico, enquanto que o Direito Internacional dos Refugiados, para ser aplicável, exige a existência das circunstâncias excepcionais mencionadas pelo Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), de 1950, e pela Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados. Assim, o "Direito Humanitário e o Direito dos Refugiados constituem, juntamente com os Direitos Humanos, um importante conjunto, no qual a peça central e mais importante é a última normativa, onde as duas primeiras aparecem como acessórios laterais e complementares, buscando a obra completa estabelecer uma defesa adequada de quem é o sujeito fundamental do Direito, quer dizer, a pessoa humana"(24).
IV - DO CONCEITO DE REFÚGIO
4.1. Conceito Doutrinário
Para o jurista mexicano Jaime Ruiz de Santiago, refúgio é "o instituto criado pela comunidade internacional, com importantes antecedentes, cujas raízes se encontram em tempos remotos, que tem como finalidade básica oferecer proteção à Pessoa Humana, cujos direitos fundamentais — a começar pelo direito à vida, à segurança e à liberdade — tenham sido violados."(25)
4.2. Conceitos Legais
4.2.1. Estatuto do Escritório do Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)
O Estatuto dos Refugiados prevê no artigo 6.A.II que refugiado é a "pessoa que, como resultado de acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, e devido a fundados temores de ser perseguido por motivos de raça, religião e nacionalidade ou opinião política, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa ou, em razão de tais temores ou razões que não sejam de mera conveniência pessoal, não queira receber a proteção desse país, ou que, por carecer de nacionalidade e estar fora do país onde antes possuía sua residência habitual não possa ou, por causa de tais temores ou de razões que não sejam de mera conveniência pessoal, não queira regressar a ele."
4.2.2. Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e do Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1967)
A Convenção de 1951 apresenta a seguinte definição:
"Artigo 1º - Definição do termo "refugiado":
A. Para os fins da presente Convenção, o termo "refugiado" se aplicará a qualquer pessoa:
1) Que foi considerada refugiada nos termos dos Ajustes de 12 de maio de 1926 e de 30 de junho de 1928, ou das Convenções de 28 de outubro de 1933 e de 10 de fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de setembro de 1939, ou ainda da Constituição da Organização Internacional dos Refugiados;
.......................................................................................................
2) Que em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontrava fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.
No caso de uma pessoa que tem mais de uma nacionalidade, a expressão "do país de sua nacionalidade" se refere a cada um dos países dos quais ela é nacional. Uma pessoa que, sem razão válida fundada sobre um temor justificado, não se houver valido da proteção de um dos países de que é nacional, não será considerada privada da proteção do país de sua nacionalidade.
B.1. Para os fins da presente Convenção, as palavras "acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951", do artigo 1º, seção A, poderão ser compreendidas no sentido de ou
a) "acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa, ou
b) "acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa ou alhures;
....................................................................................................."
O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967, visando ampliar o conceito fornecido pela Convenção de 1951, estabelece em seu artigo 1º, item II, que:
"....................................................................................................
2. Para os fins do presente Protocolo, o termo "refugiados", salvo no que diz respeito à aplicação do § 3º do presente artigo, significa qualquer pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se a palavras "em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e..." e as palavras "... como conseqüência de tais acontecimentos" não figurassem da Seção A do artigo primeiro.
......................................................................................................."
É importante observar que antes do advento da II Guerra Mundial já existiam instrumentos específicos para determinados refugiados, mas com o número extraordinário de pessoas refugiadas com o fim da guerra passou a ser uma preocupação mundial e a comunidade internacional, por razões humanitárias, assumiu a tarefa de protegê-las juridicamente de forma mais ampla, fez-se necessário um instrumento geral, que abarcasse todos os refugiados. Daí surgiu o Estatuto de 1951 (adotada por uma Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas, em 28.7.51 — em vigor a partir de 21.4.1954).
Os Estados contratantes limitavam-se a estabelecer obrigações para si apenas e tão somente para aquelas situações surgidas até 1951 (limite temporal). O Protocolo de 1967 possibilitou que novas situações fossem abarcadas.
O Protocolo é um instrumento independente, embora vinculado ao Estatuto e Convenção, uma vez que a adesão ao Protocolo não está limitada aos Estados-Partes da Convenção.
A Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 compreendem três tipos de disposições:
a) as que contêm a definição de quem é considerado refugiado e de quem, tendo sido considerado refugiado, deixou de sê-lo;
b) as que definem o estatuto jurídico dos refugiados e seus direitos e obrigações no País de acolhida; e
c) as que disciplinam a aplicação dos instrumentos nos pontos de vista administrativo e diplomático. Os artigos 35 da Convenção e 2º do Protocolo de 67 obrigam os Estados contratantes a cooperar com o ACNUR na aplicação das disposições dos instrumentos.
O Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) de 1º.1.51 — aprovado pela Assembléia Geral em 14.12.1950 — prevê que o ACNUR deve proporcionar proteção internacional aos refugiados. O referido estatuto define quem deve ser considerado refugiado para o ACNUR, assemelhando-se com a definição da Convenção.
Assim, uma pessoa pode ser considerada refugiada pelo ACNUR de acordo com o seu Estatuto mandata refugees e, também, pela Convenção e Protocolo. Uma pessoa, independentemente de se encontrar em um país que seja parte da Convenção ou do Protocolo, então, pode receber a proteção do ACNUR.
4.2.3. Direito comparado
A Convenção Africana de 10.9.1969, em seu artigo 1º, aplicável aos países membros da Organização da Unidade Africana, sem excluir as hipóteses previstas na Convenção de 1951 e Protocolo de 1967, conceitua refugiado como toda pessoa que, em virtude de uma agressão, ocupação, ou dominação estrangeira, e de acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública — em parte ou na totalidade de seu país de origem, ou do seu país de nacionalidade — se vê obrigada a abandonar sua residência habitual para buscar refúgio em outro lugar, fora de seu país de origem ou de nacionalidade(26).
A Declaração de Cartagena, de 1984, aplicável aos países da América Central, recomenda que a definição de refugiado abranja também as pessoas que fugiram de seus países porque sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela violência generalizada, pela agressão estrangeira, pelos conflitos internos, pela violação maciça dos direitos humanos ou por outras circunstâncias que hajam perturbado gravemente a ordem pública(27).
Portugal, através do artigo 2º da Lei n. 70/93, define que refugiado é o estrangeiro e apátrida: a) perseguido ou gravemente ameaçado de perseguição em conseqüência da sua atividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual; b) que receando com motivo ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opinião política ou integração em certo grupo social, não possa ou, receando, não queira voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual. Ao estrangeiro que tiver mais de uma nacionalidade, o asilo somente será concedido quando os motivos referidos nas letras anteriores se verifiquem relativamente a todos os Estados de que seja nacional.
4.2.4. Direito brasileiro
Em obediência à Convenção de 1951 e ao Protocolo de 1967 foi promulgada a Lei n. 9.474, de 22.7.1997, a qual constitui em verdadeiro Estatuto pessoal do refugiado no Brasil. A lei definiu refugiado da seguinte maneira:
"Artigo 1º - Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Artigo 2º - Os efeitos da condição dos refugiados serão extensivos ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim como aos demais membros do grupo familiar que do refugiado dependerem economicamente, desde que se encontrem em Território Nacional.
..........................................................................................................."
O artigo 1º apresenta três hipóteses para o reconhecimento de refugiados, cada uma apresentando elementos característicos próprios.
A primeira apresenta como requisitos:
a) o solicitante deve ter fundados temores de perseguição;
b) essa perseguição deve se dar por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas;
c) o solicitante de refúgio deve encontrar-se fora de seu país de nacionalidade; e
d) o solicitante de refúgio não pode ou não quer acolher-se à proteção do seu país de nacionalidade.
A segunda, por seu turno, exige os seguintes elementos:
a) o solicitante não deve ter nacionalidade;
b) o solicitante deve estar fora do país onde anteriormente teve sua residência habitual; e
c) não pode ou não quer regressar ao país onde antes teve sua residência habitual, em razão das circunstâncias de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.
A terceira e última figura de refugiado, apresenta os seguintes requisitos:
a) o solicitante deve estar no país de sua nacionalidade; e
b) existência de grave e generalizada violação de direitos humanos em tal país.
A primeira e terceira hipóteses são para os que possuem uma nacionalidade, sendo a primeira a mais comum, embora restritiva, tendo sido adotada pela Convenção de 1951. Deve ser observado, no entanto, que a terceira hipótese é mais abrangente que a adotada no direito internacional — prevista na conclusão Terceira da Declaração de Cartagena — demonstrando o respeito do Estado Brasileiro pela pessoa humana que se encontra em situação de risco. A propósito, como aduz o mestre José Henrique Fischel de Andrade, mais de 50% da população de refugiados no Brasil preenchem os requisitos elencados na terceira hipótese(28).
Exigir que um solicitante atenda aos requisitos previstos na primeira figura, como vem tratado na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967, é fechar os olhos para a realidade cruel, que se modificou da Segunda Guerra Mundial para os tempos atuais. Por isso, a posição legislativa brasileira é reconhecida como sendo moderna e adequada aos interesses das pessoas que procuram refúgio.
Verifica-se, então, que a segunda hipótese é destinada para os apátridas, ou seja, aqueles que não têm pátria como, por exemplo, os palestinos, os curdos, os tibetanos etc.
A expressão "fundados temores" envolve elementos de ordem objetiva e subjetiva, respectivamente. O temor tem caráter subjetivo, variando de pessoa a pessoa, de acordo com seu ânimo, sua formação e estado psíquico; enquanto o requisito objetivo de sólidas razões exige certa probabilidade de que venha a ocorrer, não bastando a mera possibilidade de sua ocorrência.
Certas circunstâncias e fatos devem demonstrar que a perseguição não só é possível, mas como é provável de ocorrer. Se houver a efetiva perseguição, a diferenciação far-se-á desnecessária, uma vez que não se tratará nem de probabilidade ou possibilidade, mas sim de efetividade. Assim, a perseguição pode estar prestes a ocorrer como também estar ocorrendo. A interpretação do dispositivo legal deve se dar nesse sentido até em razão de coerência com os princípios que regem a matéria.
No tocante ao requisito apresentado na terceira hipótese, de violação aos Direitos Humanos, há que se compreender a grave e generalizada violação a direito elementar previsto no ordenamento jurídico internacional e/ou interno. Interessante questão surge aqui. Se o Brasil reconhece como direitos fundamentais determinadas circunstâncias e o país de origem não, como os Direitos Humanos são universais mesmo que o país de origem não reconheça determinado direito como fundamental, o solicitante de refúgio terá direito à proteção, desde que haja grave e generalizada violação, no país de origem, aos direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico interno brasileiro.
Os efeitos da condição de refugiado são extensivos ao cônjuge, ascendentes e descendentes e aos demais indivíduos que dele dependerem economicamente, desde que se encontrem no território nacional.
Cabe destacar que a Constituição Federal de 1988, em diversos dispositivos, assegura o tratamento humano aos refugiados:
"Artigo 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
........................................................................................................
III - a dignidade da pessoa humana;
......................................................................................................
Artigo 4º - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
.......................................................................................................
II - prevalência dos direitos humanos;
...........................................................................................................
X - concessão de asilo político.
..............................................................................................................
Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à proteção, nos termos seguintes:
...................................................................................................................
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
......................................................................................................................."
V - OUTROS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 14, dispõe que em caso de perseguição, toda pessoa tem direito a buscar asilo e desfrutar do mesmo em qualquer país, enquanto que o artigo 15 dispõe que toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
O Quarto Convênio de Genebra, de 1949, relativo à proteção aos civis em tempo de guerra, se refere, em seu artigo 44, expressamente, aos refugiados e aos deslocados internos e, no artigo 73, faz menção aos refugiados e apátridas.
A Convenção de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas descreve o conceito de apátrida, ou seja, aquela pessoa que não é considerada como nacional por nenhum Estado, prescrevendo normas de tratamento aos mesmos.
A Convenção de 1961 para reduzir os casos de apátridas especifica que não se privará nenhuma pessoa ou grupo de pessoas, por motivos raciais, étnicos, religiosos e políticos, de nacionalidade.
A Declaração das Nações Unidas sobre o Asilo Territorial, de 1967, estabelece uma série de princípios fundamentais, como o da não devolução, o direito de sair, retornar e permanecer em qualquer país, inclusive o próprio, e o direito de gozar do direito de asilo, e que o asilo não pode ser considerado inamistoso por nenhum outro Estado, posto que é ato pacífico e humanitário.
Na América Latina, o problema do asilo territorial e diplomático tem sido tratado em instrumentos regionais, como o Tratado sobre Direito Penal Internacional (Montevidéo, 1889), o Acordo sobre Extradição (Caracas, 1911), Convenção sobre Asilo (Havana, 1928), Convenção sobre Asilo Político (Montevidéo, 1933), Convenção sobre Asilo Diplomático (Caracas, 1954) e Convenção sobre Asilo Territorial (Caracas, 1954).
VI - CLÁUSULAS DE CESSAÇÃO, DE EXCLUSÃO E DE PERDA
Há quatro tipos de cláusulas para os refugiados, quais sejam:
a) de inclusão — definem quem é refugiado;
b) de cessação — que fazem interromper a proteção;
c) de perda — previstas apenas no ordenamento jurídico interno e que implicam na efetiva perda da qualidade de refugiado. A diferença fundamental desta com a cláusula de cessação é a irrecuperabilidade da condição de refugiado daquela, o que não impediria que as cláusulas de perda estivessem inseridas nas cláusulas de cessação; e
d) de exclusão — somente aplicáveis àqueles que poderiam ser considerados como refugiados, ou seja, que estavam previstos na cláusula de inclusão, mas que por terem praticado ato previsto na cláusula de exclusão não poderão ser reconhecidos como refugiados.
Neste item, tratar-se-á tão somente das cláusulas que prevêem a cessação, a perda e a exclusão.
A atribuição para decidir sobre a cessação, exclusão ou perda da condição de refugiado é do Comitê Nacional para os refugiados (CONARE) em primeira instância, cabendo recurso, no prazo de quinze dias, contados do recebimento da notificação, ao Ministério da Justiça, última instância administrativa. Entretanto, poderão ser adotadas as medidas judiciais pertinentes pelo estrangeiro que se sentir prejudicado.
Caso o estrangeiro não seja localizado, a decisão será publicada no Diário Oficial da União.
6.1. Cláusulas de Cessação
A condição de refugiado somente cessa se ocorrer alguma das hipóteses previstas no ordenamento jurídico.
a) quando, voluntariamente, procura a proteção nacional, sem retornar ao mesmo (art. 1º, alínea "c", I, da Convenção e art. 38 da Lei n. 9.474/1997);
A atuação deve ser voluntária, com o intuito de receber proteção do país e receber, efetivamente, tal proteção.
Se a pretensão do solicitante de receber proteção do país de sua nacionalidade ou residência não for atendida, não deixará só por isso de ter o status de refugiado.
Não deixará de ser refugiado pelo mero fato de solicitar a repatriação. Ela deve ser aceita pelo seu país para que perca tal condição.
b) recobra a nacionalidade voluntariamente (art. 1º, alínea "c", II, da Convenção e art. 38, II, da Lei Brasileira);
A condição de nacional por decreto ou lei não implica na recuperação, se não for expressa ou tacitamente aceita pelo refugiado.
c) adquire nova nacionalidade e proteção (art. 1º, alínea "c", III, da Convenção e art. 38, III, da Lei Nacional);
d) voluntariamente volta a residir no país que abandonou ou fora do qual permaneceu por medo de ser perseguido (art. 1º, alínea "c", IV, da Convenção e art. 38, IV, da Lei n. 9.474/97);
Esta hipótese aplica-se tanto aos que possuíam uma nacionalidade como aos apátridas.
e) desaparecimento das circunstâncias para os que possuem nacionalidade ou para os apátridas (art. 1º, alínea "c", V e VI, da Convenção e art. 38, incisos V e VI, da Lei Brasileira).
As cláusulas de cessação são numerus clausus, ou seja, taxativas e, por isso, não podem ser ampliadas.
6.2. Cláusulas de Exclusão
As cláusulas de exclusão, se verificadas antes da concessão do refúgio, fazem com que o solicitante não seja aceito como tal. Se houver dúvida da existência ou não das hipóteses previstas, segundo o entendimento do ACNUR, prepondera a cláusula de exclusão. Mas, excluindo-se do solicitante o direito à obtenção de refúgio, deverá ele ser reassentado.
Segundo princípios estatuídos na Constituição Federal, bem como os dos Direitos Humanos Internacionais, ressaltando-se o direito à dignidade e da vida, o Estado brasileiro no caso de dúvida de inexistência de efetivo risco à integridade física e/ou psíquica da pessoa, deve conceder refúgio, independentemente da posição adotada pelo ACNUR.
Pode-se dizer que a Convenção de 1951 e a Lei n. 9.474/97 prevêem que as cláusulas de exclusão alcançam três grupos de pessoas. Muito embora a lei apresente quatro incisos, na verdade há três grandes hipóteses de exclusão. Nunca é demais lembrar que a interpretação na abrangência da lei deve ser restritiva, numerus clausus, não se permitindo a sua aplicação a hipóteses não previstas.
São estas as hipóteses:
a) pessoas que já recebem proteção ou assistência de algum organismo das Nações Unidas (art. 1º, alínea "d", da Convenção e art. 3º, inciso I, da Lei n. 9.474/97);
Quando a proteção ou assistência cessar e o solicitante não solucionar as causas que o levam a temer perseguição, poderá ter direito a ser considerado novamente refugiado.
b) pessoas que são consideradas como não necessitadas de proteção internacional;
São as pessoas acolhidas em um país que lhes proporciona o gozo dos mesmo direitos que os nacionais, inclusive a circunstância de não poderem ser deportadas ou expulsas (art. 1º, "e", da Convenção. e art. 3º, II, da Lei).
c) pessoas que não são consideradas merecedoras de proteção internacional, as que, por fundados temores (art. 1º, alínea "f", da Convenção e art. 3º, inciso III, da Lei Brasileira).
c.1. praticaram um crime contra a paz;
c.2. praticaram um delito de guerra;
c.3. praticaram um crime contra a humanidade;
Não há necessidade de prova, produzida em processo judicial comprobatória destas hipóteses.
As definições para crimes contra a paz ou humanidade e de guerra vêm expressos no Acordo de Londres, de 1945, e na Carta do Tribunal Militar Internacional.
c.4. que tenha praticado um grave delito comum fora do país de refúgio, antes da acolhida;
Visa-se, aqui, proteger o país receptor se o refugiado tiver sido indultado ou anistiado ou já cumprido a pena, não cabe a exclusão.
A legislação nacional prevê ainda que a prática de crime hediondo ou de tráfico de drogas impede a concessão do benefício.
c.5. que tenha praticado atos contrários às finalidades e aos princípios das Nações Unidas (art. 3º, inciso IV, da Lei n. 9.474/97).
As finalidades e os princípios das Nações Unidas estão expostos no Preâmbulo e nos artigos 1º e 2º da Carta das Nações Unidas. Assim, a pessoa deve ter ocupado um cargo de autoridade em um Estado-Membro e ter sido o autor material ou intelectual da infração pelo seu Estado a tais princípios.
Por ter caráter muito genérico, a cláusula de exclusão deve ser aplicada com cautela.
Quem decide se cabe aplicar ou não as cláusulas de exclusão é o país em que se procura o refúgio.
6.3. Cláusulas de Perda
Diferentemente das cláusulas de exclusão da Convenção de 1951, aqui a pessoa já obteve o reconhecimento da condição, perdendo-a por ato incompatível com o status de refugiado.
A Lei n. 9.474/97, em seu artigo 39, prevê quatro hipóteses de perda da condição de refugiado. São também numerus clausus, ou seja, em número determinado cujo rol não pode ser ampliado:
a) o refugiado que renunciou a tal condição;
b) houver prova da falsidade dos documentos invocados para o reconhecimento da condição de refugiado ou existir fatos que, se fossem conhecidos quando do ato do reconhecimento, teriam ensejado uma decisão negativa;
c) exercício de atividades contrárias à segurança nacional ou à ordem pública; ou
d) saída do território nacional sem prévia autorização do Governo Brasileiro.
VII - REFÚGIO E ASILO
Os institutos de refúgio e asilo, embora assemelhados, não se confundem.
Para De Plácido e Silva, refúgio e asilo possuem significações distintas. Embora empregados com sentidos equivalentes, asilo e refúgio possuem significações próprias: asilo é a proteção que se busca para se livrar da perseguição de quem tem maior força; refúgio é o abrigo que se procura para se furtar ao perigo de que se é ameaçado. No asilo, o asilador ou asilante torna-se protetor do asilado para o defender e livrá-lo da perseguição. No refúgio, quem o concede apenas o abriga até que passe ou cesse o perigo, mas não lhe assegura a proteção(29).
Na realidade, há inúmeras e fortes dissemelhanças entre os institutos em questão. Destaque-se a circunstância de que no refúgio há sim a garantia de proteção ao refugiado reconhecido como tal, seja pelos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos dos refugiados, seja, no caso do Brasil, por meio da Lei n. 9.474/97.
Com a precisão que lhe é peculiar, o eminente constitucionalista José Afonso da Silva define asilo político como o recebimento de ingresso, para evitar punição ou perseguição no seu país de origem por delito de natureza política ou ideológica. Cabe ao Estado asilante a classificação da natureza do delito e dos motivos da perseguição. É razoável que assim seja, porque a tendência do Estado do asilado é a de negar a natureza política do delito imputado e dos motivos da perseguição, para considerá-lo comum...(30)
O asilo político ou diplomático é espécie de proteção a indivíduos existente, hoje, apenas na América Latina, sendo instituto do Direito Internacional Americano(31).
O asilo diplomático surgiu com as Missões Diplomáticas durante o século XV, quando era concedido aos criminosos comuns. Celso A. Mello, citando E. Reale, observa que um estatuto de Veneza, datado de 1554 assegurava que aquele que se abrigasse na casa de um diplomata não seria perseguido, contanto que o delito fosse de direito comum e o delinqüente não se mostrasse. O citado jurista, agora citando Manuel Adolfo Vieira, internacionalista uruguaio, assinala que, no início, o asilo era concedido na sede da representação diplomática e acabou por se extender a seus arredores e abrangendo bairros inteiros.
O jus quarteriorum, então adotado, passou a sofrer limitações, até que no século XVIII desapareceu, por colidir com a noção então existente de soberania. O asilo diplomático começou a ser praticado na América Latina no século XIX, tendo sido previsto no Tratado de Direito Penal firmado em 1889 em Montevidéu apenas para os crimes políticos, nas legações e nos navios de guerra. Em 1898, o Brasil subscreveu o Tratado, com reservas. O Tratado Geral de Paz e Amizade Centro-Americana, datado de 1907, em Washington, ampliou o alcance do asilo a bordo de navios mercantes, mas com certas limitações, pois se estiverem em águas da jurisdição do Estado e houver um mandado judicial para tanto, deverão ser entregues à autoridade do Estado.
Mas o que é crime político para um Estado pode não ser para outro. Foi devido a tal incongruência que a Convenção de 1933, realizada em Montevidéu, concluiu que compete ao Estado que concede asilo a qualificação do delito político. O Tratado que hoje rege o tema é o de Caracas, de 1954.
O instituto do asilo político pertence ao Direito Internacional Positivo por constituir-se em princípio que rege as relações internacionais da República Federativa do Brasil, segundo o inciso X, do artigo 4º, da Magna Carta, sendo que critérios de conveniência, oportunidade e cortesia são aspectos também integrantes.
Em comum com o instituto do refúgio, pode-se apontar, para o asilo político, as seguintes características: não obrigatoriedade, medida unila-teral, inexistência da reciprocidade, e não há extradição.
As diferenças básicas entre tais institutos são as seguintes:(32)
REFÚGIO ASILO
1) medida humanitária 1) medida política
2) caráter universal 2) caráter regional (América Latina)
3) abarca motivos religiosos, raciais, 3) abarca tão somente os delitos
de nacionalidade, de grupo social e de políticos
opiniões políticas
4) basta o fundado temor de perseguição 4) há necessidade de efetiva perse-
guição
5) a proteção se dá fora do país 5) o asilo diplomático se dá no próprio
(como regra) país de origem
6) há cláusula de cessação, perda e 6) inexiste qualquer cláusula de
exclusão cessação, perda e exclusão
7) efeito declaratório 7) efeito constitutivo
VIII - DAS PRINCIPAIS INSTITUIÇÕES ENVOLVIDAS
NA PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS
8.1. Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR) ou United Nations High
Comissioner for Refugees (UNHCR)
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) constitui-se em órgão subsidiário da Assembléia Geral das Nações Unidas e em agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU). É composto, atualmente, por 44 membros e tem sede em Genebra, na Suíça. É a única organização internacional a cargo dos refugiados, contrariamente ao que ocorria antes de 1951. Possui cerca de 300 escritórios em mais de 120 países, sendo que no Brasil há apenas uma Missão, não chegando a constituir um escritório regional como os que existem no México, Argentina, Guatemala e Costa-Rica.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tem como finalidade o provimento de proteção internacional aos refugiados, assim como a prevenção e a busca de soluções duráveis à sua problemática(33). Desde sua criação, o ACNUR já ajudou mais de 50 milhões de refugiados, tendo-lhe sido atribuídos dois Prêmios Nobel da Paz. Suas principais atribuições são:
a) promover convênios internacionais para a proteção de refugiados, vigiando sua aplicação e propondo as modificações necessárias;
b) promover medidas destinadas a melhorar a situação dos refugiados e reduzir o número dos que precisam de proteção;
c) fomentar a repatriação voluntária dos refugiados ou seu acolhimento em novas comunidades nacionais;
d) promover a aceitação de refugiados nos Estados;
e) conhecer a situação dos refugiados, obtendo informações a respeito do número e da situação de cada refugiado que se encontra no território, bem como a respeito das leis e regulamentos que lhes sejam concernentes;
f) manter contato com os governos e as organizações governamentais e não governamentais interessadas;
g) coordenar ação privada em benefício dos refugiados;(34)
A proteção dos refugiados, efetivamente, se dá de duas formas, a primeira através da proteção institucional, ou seja, pelo ACNUR, e outra pela proteção jurídica, ou seja, pela Convenção de 1951, Protocolo de 1967 e Lei Nacional de 1997.
Verifica-se, assim, que a proteção é a essência da atividade do ACNUR. Os refugiados têm de ser protegidos contra danos físicos e contra a ameaça de regresso forçado a países onde correriam perigo. Além do amparo legal, o ACNUR presta também ajuda fornecendo alimentação, água, abrigo e assistência médica.
A prevenção compreende tanto a previsão de situações que possam gerar fluxos de refugiados, como a implementação dos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos.
São três as soluções duradouras e possíveis para os refugiados: a repatriação voluntária para os respectivos países, a integração nos países onde primeiro procuraram o refúgio local e o reassentamento, a serem analisadas mais à frente.
No dia 8.12.1997, o Alto Comissariado da Nações Unidas informou que em 1996 havia 50 (cinqüenta) milhões de deslocados internos e refugiados em todo o mundo.
Em 1996, foram atendidas pelo ACNUR 22,3 milhões de pessoas, sendo que tem diminuído o número de pessoas que procuram abrigo no exterior, aumentando, no entanto, o número de deslocados internos sur place. O continente que mais exporta refugiados é a África (4,3 milhões). Os países que mais abrigam refugiados são, respectivamente, o Irã (2 milhões), a Alemanha (1,26 milhão) e Paquistão (1,2 milhão). O maior povo apátrida do mundo é o palestino, com cerca de 3 milhões de pessoas.(35)
O Brasil é o país que mais recebe refugiados na América Latina, sendo a maioria composta por angolanos(36).
Notícias diversas são publicadas na imprensa a respeito do tema refugiados, tais como a de que angolanos refugiados no Brasil começam a voltar para seu país de origem, em razão da falta de empregos, pois embora exista ajuda financeira fornecida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (ACNUR) no valor de R$115,00 (cento e quinze reais), por um determinado espaço de tempo, a mesma não tem sido suficiente para, além desse prazo, propiciar condições de vida aos que encontram dificuldades em obter emprego(37).
Espanto maior é causado quando signatários da Convenção de 1951 não desejam receber solicitantes de refúgio por motivos econômicos internos, como é o caso da Alemanha, a qual criticou o governo italiano, que estaria disposto a receber os curdos desde que houvesse efetiva perseguição. E a crítica do governo alemão se dá apenas em razão do medo de os curdos cruzarem suas fronteiras, prejudicando a economia interna(38). Por sua vez, o governo turco tem criticado os países europeus, como o italiano, que concedem refúgio aos curdos(39).
Por tudo isso se vê a importância de um organismo internacional especializado como o ACNUR.
8.2. Procuradoria de Assistência Judiciária -
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo
Os refugiados e os solicitantes de refúgio têm direito a orientação e assistência jurídicas (art. 16, II, da Convenção de 1951).
Hoje, a Assistência Judiciária já é prestada aos solicitantes de refúgio no Estado de São Paulo, desde que pobres na acepção jurídica do termo, consoante o disposto no artigo 28 da Lei Complementar Estadual n. 478/86. A Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, órgão que presta a assistência judiciária integral e gratuita no Estado, visando a aprimorar o serviço prestado, traçou recentemente uma sistemática de cooperação com o ACNUR
A atuação da Assistência Judiciária aos solicitantes de refúgio e aos refugiados já reconhecidos como tal, nas esferas cível, penal ou trabalhista é de rigor, desde que preenchidos os requisitos legais.
Com efeito, os Estados da Federação e os órgãos a eles vinculados têm o dever de cumprir o disposto no artigo 16 da Convenção de 1951, face ao disposto no artigo 5º, inciso LXXIV (direito à assistência jurídica integral) e § 2º, e artigo 134, todos da Constituição da República.
Assim, indubitável a necessidade de a Procuradoria do Estado prestar assistência jurídica aos refugiados e aprimorar sua especialização no atendimento e na prestação do serviço a esse grupo de pessoas.
Os Procuradores do Estado da área da Assistência Judiciária podem orientar os solicitantes de refúgio nos procedimentos administrativos que tramitam no CONARE ou no Ministério da Justiça, bem como podem, ainda, elaborar defesas e ingressar com medidas judiciais, específicas ou genéricas, que visem a resguardar interesses e direitos dos refugiados e solicitantes, se carentes de recursos.
Vale mencionar que o Plano Estadual de Direitos Humanos prevê, no item 245, a meta de "apoiar os serviços gratuitos de orientação jurídica e assistência judiciária aos refugiados e migrantes".
8.3. Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE)
Lei n. 9.474, de 22.7.97, em seu artigo 11, criou o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) como órgão de deliberação coletiva, subordinado ao Ministério da Justiça.
O Comitê é constituído por um representante de cada um dos seguintes órgãos e ministérios: Ministério da Justiça, Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Trabalho, Ministério da Saúde, Ministério da Educação e do Desporto, Departamento de Polícia Federal, Organizações não governamentais ligadas aos refugiados e o ACNUR. Os membros do CONARE são designados pelo Presidente da República, após indicações dos órgãos e das entidades que o compõem. A todos há o direito a voto, com exceção ao membro do ACNUR, sendo que as deliberações devem ser adotadas com quorum mínimo de quatro membros e por maioria simples; se houver empate, o Presidente do CONARE, que necessariamente será o representante do Ministério da Justiça, dará o voto decisivo.
O CONARE é o órgão competente para análise do pedido e declaração em primeiro grau, da condição de refugiado; decidir sobre a cessação ou perda, em primeira instância, de ofício ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado; orientação e coordenação das ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados e aprovação das instruções normativas esclarecedoras à execução da Lei.
IX - DO RECONHECIMENTO DA
CONDIÇÃO DE REFUGIADO(40)
As normas prevêem que, para o reconhecimento da condição de refugiado, deve haver fundados temores da pessoa ser perseguida. Contudo, a expressão "temor" tem conteúdo subjetivo, o que implica a avaliação das declarações do solicitante de refúgio e um juízo sobre a situação existente em seu país de origem. Já o termo "fundados" tem conotação objetiva, o que implica que não é apenas o estado de ânimo que determinará sua condição de refugiado. Verifica-se, então, a congruência entre elemento objetivo (fundado) e subjetivo (temor).
A avaliação do elemento subjetivo é inseparável da apreciação da personalidade do solicitante, uma vez que as reações psicológicas dos indivíduos podem não ser idênticas perante uma mesma situação. Uma pessoa pode ter convicção política ou religiosa tão arraigada, que sua convivência se torna insuportável em um país onde não é aceita, enquanto outra, não tão convicta, convive com razoável suportabilidade.
O temor deve ser razoável mas o temor exagerado (diferente do infundado), dependendo das circunstâncias, até pode ser aceito. O temor pode a abarcar efetiva perseguição ou a iminente, onde há sério risco desta ocorrer. Deve-se levar em conta os antecedentes pessoais e familiares do solicitante, verificando-se se pertence a determinado grupo religioso, racial, nacional, social ou político.
A declaração da situação de refugiado se faz mediante análise individual, mas a presença de um grupo muito numeroso que torne impossível a avaliação individual, justificar a análise coletiva, simplificando, assim, o procedimento de investigação.
A presunção é de que a pessoa que solicita o refúgio tem temores fundados de perseguição; contudo, deve ela justificar o porquê da solicitação de tal estado.
Abaixo tratar-se-á de conceitos importantes para o estudo do tema, bem como de situações diversas(41):
9.1. Perseguição
Pela Convenção de 1951, perseguição seria a ameaça contra a vida ou contra a liberdade, em razão de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. Também seria perseguição a existência de graves violações a direitos humanos.
9.2. Discriminação
Somente se considerará perseguição a discriminação que tiver caráter lesivo à pessoa, como limitar-se gravemente o seu direito à vida, à prática religiosa, ou impedir o acesso aos serviços essenciais. Ou então, caso não haja caráter lesivo, que a pessoa solicitante sinta-se insegura e desconfiada com relação ao futuro.
9.3. Sanções Judiciais
Muitas vezes as sanções judiciais podem ser consideradas violadoras de princípios de direitos humanos (castigos excessivos, pena de morte etc.) e até mesmo ter conotação outra, que não a de sancionar, mas de perseguir.
A discriminação na aplicação da lei é também uma forma grave de perseguição.
9.4. Distinção entre os Emigrantes por motivos
econômicos e os Refugiados
Emigrante é aquele que sai por vontade própria de seu país, visando estabelecer residência em outro local, seja por motivo financeiro, familiar, pessoal ou de simples aventura.
Não é fácil, porém, distinguir o emigrante por motivos econômicos do refugiado. Muitas vezes, medidas econômicas podem ocultar intenções de afetar indivíduos, em razão de ordem racial, religiosa ou política.
Se medidas econômicas afetarem setor específico da população, privando grupos étnicos ou religiosos de exercer o comércio, exemplificativamente, pode estar caracterizada a fundada perseguição.
As medidas econômicas de caráter geral, no entanto, geram maior dificuldade para a apreciação do tema.
9.5. Agentes perseguidores
A perseguição pode partir das autoridades do país ou então de setores da população que não respeitam as normas vigentes. Se as autoridades se omitirem, tolerando a perseguição, estará caracterizada a perseguição, hábil a fundamentar o pedido de refúgio.
9.6. Raça
A questão racial alcança qualuer grupo étnico. A discriminação racial, muitas vezes, eqüivale à perseguição, desde que vulnere a dignidade da pessoa humana, incompatibilizando-se com os direitos mais elementares e inalienáveis.
9.7. Religião
As proibições de culto privado ou público e de instrução religiosa são medidas de perseguição.
9.8. Nacionalidade
A expressão "nacionalidade" não se confunde com a presença em um território, predominando, atualmente, a interdependência deste com um grupo étnico ou linguístico, podendo, por isso, coincidir com o conceito de etnia.
A coexistência em um mesmo Estado de dois ou mais grupos nacionais pode criar situações de conflito e de perseguição ou de perigo de perseguição.
Normalmente é difícil diferenciar entre perseguição por motivo de nacionalidade e por motivos de opinião política, principalmente quando grupos nacionais se combinam com movimentos políticos.
9.9. Determinado grupo social
Esta expressão compreende pessoas de antecedentes, costumes ou condições similares. Muitas vezes a aparente perseguição a um grupo social se dá em razão de intolerância religiosa ou racial.
A perseguição a determinado grupo social pode se dar em razão do poder governamental entender que aquele lhe é incômodo, constituindo um obstáculo às suas pretensões. Seria o caso, exemplificativamente, dos nobres quando da Revolução Russa de 1917.
9.10. Opiniões políticas
Aqui é importante ressaltar que, para efeitos de caracterização da perseguição, as opiniões políticas manifestadas não podem ser toleradas pelas autoridades, pois se o fossem, não haveria motivo para o refúgio.
9.11. O solicitante se encontra fora do país de sua
nacionalidade ou de sua residência habitual
As pessoas que procuram refúgio nas embaixadas estrangeiras, na verdade, estão procurando asilo diplomático — isto, na América Latina —, posto que as embaixadas se encontram no território da nacionalidade do solicitante, o que impede o refúgio, cujo requisito é encontrar-se fora do país de sua nacionalidade ou residência — com exceção à hipótese de grave e generalizada violação de direitos humanos, quando o solicitante poderá estar ainda no país de origem.
O temor de perseguição pode se dar em parte do território nacional. Muitos conflitos étnicos e graves distúrbios ocorrem em determinada parte do solo do país. Mas mesmo que isto ocorra, poderá se dar refúgio ao solicitante, uma vez que muitas vezes não é razoável exigir que procure lugar seguro, se isto implicar em razoável risco de vida.
9.12. Refugiados sur place
São pessoas que não eram refugiadas ao deixar o seu país, mas que vêm a adquirir tal qualidade ulteriormente. É o caso da pessoa que está há tempos fora de seu país e que tem medo de retornar porque, agora, há fundado receio de perseguição. Ou seja, durante a sua ausência do país, surgiram condições que geraram fundado temor de perseguição.
9.13. Pessoa internamente deslocada (desplazado)
Pessoa que não chegou a cruzar uma fronteira internacionalmente reconhecida, mas que é forçada a fugir de sua casa pelas mesmas razões que os refugiados.
9.14. Pessoa que não goza da proteção do país
Caso de Estado de guerra civil e outros distúrbios graves. A proteção é negada ou é ineficaz.
O recusado somente poderá recusar a proteção fornecida pelo Estado de origem se houver fundados temores de que mesmo assim venha a ser perseguido.
9.15. Sem nacionalidade
Esta é a questão referente aos apátridas. Geralmente, o apátrida que tenha abandonado o país onde tinha sua residência, não poderá retornar, uma vez que não é nacional. Nem todos os apátridas são refugiados, pois devem se encontrar fora do país onde tinham sua residência, vendo-se impossibilitados de retornar a tal local ou se, retornando, venham a ter fundados temores de serem perseguidos.
Vale notar que apátrida pode ter residência habitual em mais de um país e pode vir a temer ser perseguido em um ou alguns deles, não precisando satisfazer o requisito da convenção com todos os países.
9.16. Dupla ou múltipla nacionalidade
Tendo o solicitante mais de uma nacionalidade, o fundado temor deve se dar em todos os países, sob pena de não poder receber a proteção.
Ora, se a pessoa tem mais de uma nacionalidade e é perseguida em um país, pode e deve procurar abrigo no outro país, pois a proteção nacional tem primazia sobre a proteção internacional.
Somente quando uma pessoa que tenha dupla nacionalidade, venha a ser perseguida em um país e no outro venha a ter indeferido — explícita ou implicitamente — o pedido de proteção, aí sim poderá ter direito à proteção internacional.
9.17. Mulheres que sofrem perseguição por não concordar com restrições sociais ou mutilação genital
Podem ser consideradas refugiadas as mulheres que se recusam a usar roupas restritivas, recusam-se a aceitar marido imposto contra a vontade e por isso passam a sofrer discriminação severa ou tratamento degradante. Os Estados Unidos da América, o Canadá, a Alemanha, os Países Baixos e a Suíça têm aceito tais pessoas como refugiadas.
No tocante à mutilação genital, França, Canadá e Estados Unidos têm aceito as mulheres que se recusam a tal procedimento, conferindo-lhes o status de refugiadas.
9.18. Proteção temporária
É forma interina de proteção, que não assegura todos os direitos sociais dos refugiados, mas vem proteger as pessoas de forma imediata, sem uma prévia seleção, o que ocasionaria evidentes prejuízo aos solicitantes.
9.19. Refugiados de guerra
As vítimas dos conflitos armados são protegidas pela Convenção de Genebra de 1949 e seu Protocolo Adicional, datado de 1977, com fundamento no direito internacional humanitário.
Entretanto, invasão ou ocupação de parte ou totalidade de um país por uma potência estrangeira pode motivar perseguições. Se tiver fundados temores de ser perseguida, sem receber proteção de seu governo ou de Potência estrangeira que esteja obrigada a lhe salvaguardar interesses durante o conflito, poderá, então, tal pessoa solicitar a condição de refugiado.
9.20. Desertores
A deserção geralmente é considerada delito, trate-se ou não de serviço militar obrigatório. O temor de sofrer sanção por simplesmente ter desertado em razão de não gostar de armas ou combate não é motivador do refúgio.
Se, no entanto, comprovar que fora alistado em retaliação a opção religiosa, sexual ou política, poderá a pessoa, se houver fundado receio de perseguição, pedir o refúgio. O mesmo vale quando for alistado para combater pessoas que possuem as mesmas convicções políticas e religiosas.
X - PRINCIPAIS PRINCÍPIOS INFORMATIVOS
10.1. Princípio da Não Devolução (Princípio da Non-Refoulement)
É considerado o princípio basilar, a coluna vertebral do sistema jurídico protetor dos refugiados(42).
Estando consagrado no artigo 33 da Convenção de 1951. O artigo 22, VIII, da Declaração Americana dos Direitos Humanos também o consagra. O artigo 3º da Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos e penas cruéis, desumanas e degradantes estipula que: "Nenhum Estado Parte procederá à expulsão, devolução ou extradição de uma pessoa a outro Estado quando houver fundadas razões para crer que estaria em perigo de ser submetida à tortura."
Foi com base nessa determinação que em 1997 o Ministro José Celso de Melo Filho, do Supremo Tribunal Federal, negou o pedido de extradição de chinês que havia praticado grave crime em seu país de origem e ingressado ilegalmente no Brasil, posto que, se fosse devolvido à China, seria provavelmente submetido à pena de morte.
10.2. Princípio do In Dubio Pro Refugiado
O estrangeiro que solicitar o reconhecimento da condição de refugiado goza do benefício da dúvida.
Havendo dúvida acerca de efetiva perseguição ou do temor de que essa possa vir a ocorrer, resolver-se-á sempre em benefício do solicitante.
10.3. Princípio da unidade da família
A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que a família é elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. Outros instrumentos internacionais dispõem de forma similar.
A ata final da Conferência que aprovou a Convenção de 1951 recomenda a manutenção da unidade familiar do refugiado e a proteção aos menores de idade.
Família geralmente é considerada o núcleo composto pelos cônjuges e filhos. Se menor o refugiado, sua entidade familiar será composta apenas pelos ascendentes. A legislação brasileira dá uma interpretação mais extensiva e humana para entidade familiar, como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (§ 4º, art. 226 da Constituição Federal), reconhecendo, inclusive, a união estável.
XI - PROCEDIMENTOS PARA A DETERMINAÇÃO DA CONDIÇÃO DE REFUGIADO
No âmbito global, a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 definem apenas quem pode ser considerado refugiado, sem esmiuçar o necessário procedimento a ser adotado para tal fim.
É evidente, então, que cada Estado-parte deve adotar um procedimento próprio, de acordo com sua estrutura legal e administrativa(43) sem, no entanto, esquecer da necessária celeridade procedimental e da proteção do solicitante de refúgio.
11.1. Das Recomendações do ACNUR
O ACNUR recomenda um apoio psicológico, e a razão disso é evidente, bastando considerar a situação em que o pretendente de refúgio se encontra. Além disso, o Comitê Executivo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados recomendou, em 1977, que os procedimentos a serem adotados pelos Estados-Partes obedecessem aos seguintes requisitos básicos:
a) o funcionário que irá atender o refugiado deve conhecer todos os Instrumentos Internacionais que se relacionem com os Refugiados, direta ou indiretamente, e ter noção da realidade díspare dos refugiados;
b) o funcionário competente deve atuar sempre atendendo ao princípio da não devolução non-refoulement;
c) o funcionário competente deve fornecer ao solicitante as informações necessárias sobre o procedimento para apuração de sua situação, inclusive o prazo para retirar documento de identificação, na hipótese de concessão de refúgio;
d) de preferência, uma única pessoa, previamente identificada, deve decidir os casos, a fim de harmonizar as conclusões;
e) os Estados-partes devem propiciar serviços de intérprete qualificado e informar ao solicitante a possibilidade de obter orientação e apoio de funcionários da agência do ACNUR local;
f) no caso de não concessão, deve-se conceder um prazo razoável para o apelo, concedendo-se ao solicitante, enquanto aguarda a decisão definitiva, o direito de permanecer no país.
Em diversos países, Membros do ACNUR cooperam com as autoridades locais na verificação da condição de refugiado, com fulcro no disposto no artigo 35 da Convenção de 1951 e artigo 2º do Protocolo de 1967.
O Direito dos Refugiados adota também o princípio do ônus da prova, isto é, aquele que alega deve provar. No entanto, em razão da peculiaridade da situação do refugiado que foge emergencialmente, sem ter tempo de obter e trazer consigo todos os documentos pertinentes, o examinador, a quem cabe averiguar e avaliar os fatos, deve colaborar na obtenção de provas, recorrendo a todos os meios possíveis, aplicando, ainda, o benefício da dúvida em favor do refugiado.
11.2. Da Lei n. 9.474/97
O artigo 17 dispõe que o estrangeiro deverá se apresentar à autoridade competente e manifestar sua vontade de solicitar o reconhecimento da condição de refugiado. Ainda que tenha ingressado ilegalmente, não poderá ser deportado a lugar que o exponha a perigo (art. 7º, inc. I). E o mero fato de ingressar irregularmente não é óbice para a formulação do pedido de refúgio. A Lei nacional estabelece que o estrangeiro que seja considerado perigoso para a segurança do Brasil não poderá requerer o reconhecimento como refugiado (art. 7º, § 2º). No entanto, não poderá ser deportado para local que coloque sua vida ou liberdade em risco. Além do mais, o citado dispositivo contraria os princípios constitucionais do devido processo legal, da presunção do estado de inocência, da ampla defesa e do contraditório, motivo pelo qual deve ser entendido como inconstitucional.
Com a mera solicitação de reconhecimento de sua condição de refugiado haverá a suspensão dos procedimentos administrativo e penal pela entrada irregular, eventualmente instaurado contra o peticionário e familiares que o acompanham. Reconhecida a condição de refugiado, o procedimento, se instaurado, será arquivado, desde que a infração se relacione com os fatos que justificaram o reconhecimento.
A autoridade competente para receber o pedido é a autoridade migratória, ou seja, agente lotado no Departamento de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras da Polícia Federal (arts. 7º, caput, e 21).
Cabe aqui argumentar que a manifestação de vontade deve ser voluntária, não precisando ser espontânea, ou seja, pode outra pessoa convencê-lo da conveniência de requerer o refúgio. Mas, segundo a lei, deve haver a manifestação de vontade, não podendo ser iniciado o procedimento de ofício.
Após a manifestação de vontade, a autoridade competente notificará o solicitante para prestar declarações, ato que marcará a data de abertura dos procedimentos. Nesse momento, a agência do ACNUR deve ser informada para, querendo, oferecer sugestões que facilitem seu andamento (art. 18, parágrafo único, da Lei n. 9.474/97, c.c. o art. 35, da Convenção de 1951). Ainda, deverá o estrangeiro preencher documento de solicitação de reconhecimento como refugiado, fornecendo identificação completa, qualificação profissional, grau de escolaridade sua e dos membros familiares, e relatar as circunstâncias e fatos que fundamentem o pedido de refúgio, indicando os elementos de prova eventualmente existentes, sob caráter sigiloso (art. 20). Se houver necessidade, deve haver a colaboração de um intérprete.
Feita a solicitação, o Departamento de Polícia Federal deverá emitir protocolo, autorizando a estada até decisão final do processo. A partir daí então, o solicitante terá direito à emissão de Carteira de Trabalho provisória (art. 21).
Enquanto não houver decisão definitiva, ao solicitante será aplicada a legislação sobre estrangeiros, respeitadas as normas específicas contidas na lei de refugiados.
O Departamento de Polícia Federal deverá, ainda, efetuar as diligências determinadas pelo CONARE, órgão incumbido de analisar e decidir a respeito do pedido de refúgio (arts. 23 e 12, inc. I).
Após a finalização da instrução probatória, o Delegado de Polícia Federal competente elaborará relatório e encaminhará os autos do procedimento ao Secretário ou Coordenador-Geral do CONARE (arts. 24 e 14, § 3º), para que o inclua na pauta da próxima reunião, de acordo com o regimento interno (art. 24 c.c. art. 13, parágrafo único).
Seja qual for a decisão do CONARE, positiva ou negativa, deve ela ser fundamentada (arts. 26 e 29), notificando-se o solicitante (art. 27).
Se a decisão reconhecer a condição de refugiado, terá natureza de decisão declaratória, ou seja, produzirá efeitos retroativos, ex tunc, registrando-se o refugiado no Departamento de Polícia Federal, onde assinará termo de responsabilidade e solicitará cédula de identidade permanente (arts. 26 e 28).
Se a decisão não reconhecer, for negativa, o solicitante terá direito de recorrer ao Ministério da Justiça, dentro do prazo de quinze dias, contados do recebimento da notificação (art. 29).
A decisão não definitiva não impedirá o solicitante de permanecer, com seus familiares, no território nacional, podendo, ainda, laborar (art. 30).
Na instância administrativa, não cabe recurso da decisão do Ministério da Justiça. Mas, face ao preceito constitucional de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (inc. XXXV, art. 5º, da Magna Carta), o solicitante poderá ingressar com ação declaratória, Mandado de Segurança ou outra medida que vise a protegê-lo, ainda que temporariamente.
Se o solicitante não foi reconhecido como refugiado, também pelo Poder Judiciário, ficará sujeito à Lei de Estrangeiros (Lei n. 6.815/80, alterada pela Lei n. 6.964/81), sendo inviabilizada a devolução para o seu país de nacionalidade ou de residência habitual, enquanto permanecerem as circunstâncias motivadoras da fuga, salvo se tiver praticado crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo ou participado de atos terroristas ou de tráfico de entorpecentes ou, ainda, se for considerado culpado por qualquer outro ato contrário aos fins e princípios das Nações Unidas (arts. 32 e 3º, incs. III e IV).
XII - DAS SOLUÇÕES DURÁVEIS
12.1. Repatriação (art. 42, Lei n. 9.474/97)
O direito de regressar ao seu próprio país é tão sagrado como o direito de procurar refúgio, mas nem sempre isso é possível, porque requer a eliminação das condições que levaram os refugiados ao exílio.
Para que a repatriação voluntária ocorra, é necessário que o país de origem garanta os direitos básicos da pessoa e a comunidade internacional colabore com aqueles, de forma a tutelar-se também os direitos econômicos, sociais e culturais. Demonstrando a ligação entre direitos humanos e o desenvolvimento econômico, social e cultural, José Ayala Lasso, primeiro Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, já em 1994, reconhecia que o direito ao desenvolvimento era um dos direitos fundamentais da pessoa humana.
A repatriação é a melhor solução para o problema, segundo o ACNUR, principalmente porque o estrangeiro voltará ao local em que criou amigos e família, ao seu ambiente social de origem.
Uma das características da repatriação é a voluntariedade, salvo se inexistirem as circunstâncias determinantes do refúgio, quando então a repatriação não poderá ser recusada pelo estrangeiro.
12.2. Da integração local (arts. 43 e 44, Lei n. 9.474/97)
Significa a integração do estrangeiro na comunidade em que está vivendo, adaptando-se aos costumes locais, tendo condições de laborar ou até mesmo realizar cursos técnico-profissionalizantes.
12.3. Do reassentamento (arts. 45 e 46, Lei n. 9.474/97)
De regra, o reassentamento em outros países depende da vontade do refugiado. É solução subsidiária, portanto. A pessoa é levada a um terceiro país, quando o país de destino não a aceitou em seu território, após o procedimento regulamentar, como refugiado. Lembre-se que a pessoa não pode ser encaminhada ao país de origem, face ao princípio protetor da não devolução, salvo os casos expressamente previstos em lei.
XIII - DOS EFEITOS DO RECONHECIMENTO DA
CONDIÇÃO DE REFUGIADO NA EXTRADIÇÃO
E NA EXPULSÃO
A deportação (art. 57 da Lei n. 6.815/80) é ato de ofício do governo brasileiro e ocorre quando o estrangeiro que entra ou permanece irregularmente no país não se retira voluntariamente. Evidentemente, a deportação não é aplicável aos solicitantes de refúgio e nem aos refugiados já reconhecidos como tal, até em razão do que dispõe a lei (art. 7º, § 1º, da Lei n. 9.474/97).
A extradição (art. 76 da Lei n. 6.815/80), diferentemente, se aplica ao estrangeiro que entra ou permanece regularmente no país, e deve ser precedida de um pedido devidamente fundamentado em tratado internacional, salvo quando prometida a reciprocidade, de um governo estrangeiro, cabendo ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar os pedidos de extradição (art. 102, inc. I, alínea "g").
A extradição não será concedida quando for em razão de crime político ou de opinião (art. 5º, inc. LII, da Constituição Federal). Acrescente-se que o mero pedido de refúgio implica na suspensão de qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, que seja baseado nos fatos que fundamentaram a concessão do abrigo (art. 34). Desde que reconhecido como refugiado, nenhum pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio poderá tramitar (art. 33).
A expulsão também só se aplica ao estrangeiro em situação regular, cabendo a decisão ao Presidente da República, de acordo com os critérios de conveniência e oportunidade (art. 66 da Lei n. 6.815/80). Por fim, nenhum refugiado que esteja regularmente registrado poderá ser expulso, salvo por motivos de segurança nacional ou de ordem pública.
XIV - DOS DIREITOS PREVISTOS AOS REFUGIADOS
Os refugiados possuem os mesmos direitos que os estrangeiros regularmente residentes no país não naturalizados. Possuem a garantia de não serem devolvidos, em caso de extradição ou expulsão, aos países em que havia probabilidade de serem perseguidos.
O artigo 5º da Convenção de 1951 prevê expressamente que nenhuma disposição lá prevista poderá prejudicar outros direitos e vantagens concedidos aos refugiados.
A Convenção preceitua, ainda, que os refugiados:
1) não podem ser discriminados quanto à raça, à religião ou ao país de origem (art. 3º);
2) têm garantida a liberdade de instrução religiosa de seus filhos (art. 4º);
3) podem adquirir propriedade móvel e imóvel nas mesmas condições que o estrangeiro em geral (art. 13), o de ter sua propriedade intelectual e industrial protegida da mesma forma que ocorre com os nacionais do referido país (art. 14);
4) direito a associação, desde que não haja fins políticos e nem lucrativos, e de filiação a sindicatos profissionais (art. 15);
5) direito de ter acesso à Justiça e gozar, assim como os nacionais e desde que preenchidos requisitos comuns, do direito à assistência judiciária e à isenção de custas (art. 16);
6) direito a gozar dos direitos trabalhistas e de exercer livremente uma atividade profissional assalariada (art. 17) ou liberal (art. 19), desde que preenchidos os requisitos eventualmente existentes para tanto;
7) direito de empreender (ser empresário) nas mesmas circunstâncias que os estrangeiros em geral (art. 18);
8) direito de não sofrer racionamentos de produtos em que há escassez, de forma mais gravosa que os nacionais (art. 20);
9) direito ao ensino primário gratuito e, nas mesmas condições que ao estrangeiro em geral, aos outros graus de ensino (art. 22);
10) direito à assistência pública, previdência social e direitos trabalhistas (arts. 23 e 24);
11) direito de escolher o local de sua residência (art. 26) — a praxe de deixar os refugiados em acampamentos viola direito basilar;
12) direito à obtenção de documento de identidade (arts. 27 e 6º) e de viagem para o exterior (arts. 28 e 6º);
13) direito à carteira de trabalho (art. 6º);
14) direito a ingressar com pedido de naturalização, preenchidas as condições para os demais estrangeiros (art. 34);
15) direito à gratuidade nos processos de reconhecimento da condição de refugiado, bem como à celeridade no trâmite dos mesmos;
16) direito à aplicação da norma que lhe for mais benéfica etc.
Também têm direito a uma nacionalidade (art. 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos) e ao asilo (art. 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, além da Convenção de 1951, Protocolo de 1967 e Lei n. 9.474/97); têm também direito a sair, entrar e permanecer em qualquer país, inclusive o próprio (art. 13, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e artigo 12 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).
Têm, principalmente, o direito à não devolução (art. 33 da Convenção de Genebra, art. 3º da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, e artigo 22 da Convenção Americana dos Direitos Humanos).
Cabe ao Estado garantir os direitos dos refugiados, não podendo tolerar a violação por seus agentes ou por seus jurisdicionados. Se houver violação por parte de um jurisdicionado, o Estado acolhedor, conforme as circunstâncias, poderá ser responsabilizado, posto que cabe aos Estados exercer a devida diligência para prevenir violações dos direitos humanos, como bem decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em sentenças proferidas em 1988/1989, nos casos hondurenhos "Velásquez Rodriguez e Godínez Cruz"(44).
Assim, cabe aos Estados não apenas legislar sobre a matéria, impondo obrigações aos seus jurisdicionados, mas também, implementar a efetivação dos direitos dos refugiados, através de uma política governamental correta e da responsabilização judicial dos violadores.
XV - CONCLUSÕES
15.1. O problema dos refugiados não é recente, remontando ao início da civilização humana. De início, o papel de protetor era exercido por particulares ou instituições religiosas, demonstrando a predominância do caráter de humanitarismo. Hoje, diversamente, a proteção se dá a nível global, por entidades governamentais e não-governamentais, regionais e mundiais. A integração cultural e econômica existente forçaram os Estados modernos a se preocuparem com a estabilidade política e com o conseqüente cumprimento de disposições mínimas garantidoras da ordem democrática e, portanto, dos direitos humanos em todo o mundo.
15.2. Os refugiados são pessoas que sofrem violação de seus direitos elementares em decorrência de guerras, perseguições, discriminações, intolerâncias etc. Os direitos humanos dessas pessoas são violados antes, durante e depois do processo de solicitação de asilo ou refúgio, principalmente, quando do fundado temor de perseguição, quando da solicitação de refúgio e quando do aguardo do restabelecimento da garantia de vida, liberdade ou segurança do refugiado. A não garantia ou assecurabilidade de direitos elementares humanos acarreta o refúgio e o deslocamento interno.
15.3. Há o entrelaçamento e a complementaridade entre os direitos humanos, direito humanitário e direito dos refugiados, porque visam em comum a salvaguarda do ser humano. Os direitos humanos devem ser compreendidos como matéria do Direito Internacional, e o direito dos refugiados, por sua vez, faz parte, integra e constitui-se em ramo especializado do primeiro.
15.4. Na ordem mundial atual, o respeito aos direitos humanos se faz necessário não apenas em amor à pessoa, mas também à própria estabilidade política dos governos, evitando-se o totalitarismo em benefício da democracia. E por isso diversos governos têm se preocupado com a questão específica dos refugiados. Ressalte-se que o desrespeito aos direitos elementares de um grupo significativo de pessoas em outro país pode acabar gerando conseqüências desastrosas a países vizinhos, primeiramente, e até aos mais distantes, a final. Assim, a intervenção das Nações é necessária também pelo aspecto político e não apenas humanitário.
15.5. Atualmente, razões econômicas têm feito com que menos países cumpram à risca as determinações dos instrumentos internacionais de proteção dos refugiados (Convenção de 1951, complementada e ratificada pelo Protocolo de 1967) e outros de direitos humanos em geral, demonstrando que nem sempre o que interessa é o caráter humanitário, mas sim o de garantia de estabilidade no poder, ou seja, da própria economia interna ou regional.
15.6. O Brasil, diversamente de outros países já estabilizados economicamente, vem dando demonstrações claras de respeito aos direitos humanos, ou seja, de que pretende cumprir aquilo a que se comprometera, tendo editado uma lei específica sobre o tema refugiados (Lei n. 9.474/97). Esta lei é considerada liberal e de fato garantidora de direitos dos refugiados, mas portadora de alguns equívocos.
15.7. A Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, através da Área de Assistência Judiciária, tem atuado efetiva e condizentemente com os ditames dos direitos humanos, proporcionando e aprimorando cada vez mais a orientação e assistência jurídicas aos refugiados ou solicitantes de refúgio hipossuficientes financeiramente.
15.8. Mas a situação mundial atual não é nada alentadora. Não é possível conceber e permitir que a defesa dos direitos humanos fique submetida a critérios de oportunidade e conveniência dos governos, pois senão todas as conquistas humanitárias poderão facilmente sucumbir. O número de refugiados poderia ser diminuído se a Organização das Nações Unidas (ONU) possuísse maior poder de sanção. Muito embora o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados venha realizando um bom e significativo trabalho na área em estudo, por não possuir poder sancionador efetivo, não pode penalizar os países descumpridores, sejam os que geraram os refugiados, sejam os que deixaram de recebê-los, sejam ainda os que receberam mas desconsideraram direitos elementares daqueles. Enquanto essa ordem mundial não for garantida por um organismo mundial realmente dotado de força e de expressivos poderes de sanção, a situação dos refugiados não será modificada, mas apenas e tão somente atenuada.
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(1) Folheto informativo da United Nations High Comissioner for Refugees (UNHCR).
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) Celso D. de Albuquerque Mello. Direito internacional americano. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p.181.
(5) Antônio Augusto Cançado Trindade, Gérard Peytrignet & Jaime Ruiz de Santiago. As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana, San José da Costa Rica: IIDH, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996, p. 260.
(6) Jaime Ruiz de Santiago. Os direitos humanos dos refugiados no Brasil. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, ano XLV-XLVI, Dezembro 1992/Maio 1993, n. 84-86, p. 126-7.
(7) Antônio Augusto Cançado Trindade, Gérard Peytrignet e Jaime Ruiz de Santiago. As Três vertentes da proteção internacional dos Direitos da Pessoa Humana, San José da Costa Rica: IIDH, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996, p. 267-268.
(8) José Francisco Rezek. Direito internacional público, São Paulo: Saraiva, 1991.
(9) Flávia Piovesan. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. p. 97
(10) Boletim do Centro de Estudos, São Paulo, 21(4):318, jul./ago. 1997.
(11) Antônio Augusto Cançado Trindade, Gérard Peytrignet & Jaime Ruiz de Santiago. As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana, San José da Costa Rica: IIDH, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996, p. 30
(12) Richard B. Bilder, An overview of international human rights law, in: Hurst hannum, guide to international rights pratice, 2. ed., Philadelphia, University of Pennsylvania Press, p. 3-5.
(13) Ibid., p. 127.
(14) Antônio Augusto Cançado Trindade, Gérard Peytrignet & Jaime Ruiz de Santiago. As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana, San José da Costa Rica: IIDH, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996, p. 129
(15) Ibid., p. 37.
(16) ACNUR. Conclusiones sobre la Protecion Internacional de los Refugiados, aprobadas por el Comité Ejecutivo del Programa del ACNUR, Genebra, 1990, p. 11, 21, 61, 84, 97 e 134.
(17) Ibid., p. 97.
(18) Antônio Augusto Cançado Trindade, Gérard Peytrignet & Jaime Ruiz de Santiago. As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana, San José da Costa Rica: IIDH, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996, p. 103.
(19) Ibid., p. 97.
(20) Ibid., p. 103.
(21) Ibid., p. 119.
(22) Ibid., p. 226.
(23) Ibid., p. 230.
(24) A incorporação das normas internacionais de proteção dos dir. humanos no dir. brasileiro, San José, C.R.: Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CIVC), Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e Comissão da União Européia(CUE), 1996, p. 116.
(25) A incorporação das normas internacionais de proteção dos dir. humanos no dir. brasileiro. San José, C.R.: Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CIVC), Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e Comissão da União Européia(CUE), 1996, p. 119.
(26) A incorporação das normas internacionais de proteção dos dir. humanos no dir. brasileiro. San José, C.R.: Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CIVC), Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e Comissão da União Européia(CUE), 1996, p. 120.
(27) José Henrique Fischel de Andrade. O refugiado à luz do direito internacional e do direito brasileiro. Brasília, Conselho Federal da OAB/DF, 1997, p. 153.
(28) Ibid., p. 153.
(29) José Henrique Fischel de Andrade. O refugiado à luz do direito internacional e do direito brasileiro. Brasília: Conselho Federal da OAB/DF, 1997, p. 153.
(30) De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Forense, v. 4, 1984, p. 64-65.
(31) José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 325-326.
(32) Celso D. de Albuquerque Mello. Direito internacional americano. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 231.
(33) Seminário realizado pelo ACNUR: Aplicação Doméstica do Direito Internacional dos Refugiados, Recife/PE, dias 3 e 4 de dezembro de 1996.
(34) José Henrique Fischel de Andrade. O refugiado à luz do direito internacional e do direito brasileiro. Brasília, Conselho Federal da OAB/DF, 1997, p. 150.
(35) Folheto Informativo n. 20. Los derechos humanos y los refugiados, p. 5-6.
(36) Jornal O Estado de São Paulo, de 9.12.97, p. A-16.
(37) Jornal O Estado de São Paulo, de 1º.12.96, p. A-22.
(38) Jornal Folha de São Paulo, de 8.6.97, p.1-21.
(39) Jornal O Estado de São Paulo, de 13.1.98, p. A-16.
(41) Jornal O Estado de São Paulo, de 3.1.98, p. A-10, e de 9.1.98, p. A-14.
(42) Oficina Del Alto Comissariado de Las Naciones Unidas para Los Refugiados. Manual de Procedimento y Critérios para determinar la condicion de refugiados,Genebra, enero de1988.
(43) Antônio Augusto Cançado Trindade, Gérard Peytrignet e Jaime Ruiz de Santiago. As Três vertentes da proteção internacional dos Direitos da Pessoa Humana, San José da Costa Rica: IIDH, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996, p. 270.
(44) Oficina Del Alto Comisionado de Las Naciones Unidas para Los Refugiados. Manual de procedimentos y criterios para determinar la condición de refugiados, Genebra, 1988. p. 51-52.