Cada vez mais o Brasil investe no soft power (em inglês, "poder suave"). O termo criado por especialistas em relações internacionais compreende a utilização da estrutura do país para influenciar indiretamente o comportamento ou interesses de outras nações por caminhos como contribuições financeiras, ações sociais, transferência tecnológica e cooperação técnica. O governo brasileiro desempenha esse papel em países na África, Oriente Médio e América Latina e Caribe, com um enfoque especial para o Haiti, onde lidera desde 2004 a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti).
(foto: arquivo pessoal)
Inspirada no Fome Zero – programa governamental destinado a garantir a alimentação da população –, a iniciativa brasileira cresceu durante os últimos anos, de acordo com o ministro Milton Rondó Filho, chefe da CGFome (Coordenação Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome) e se tornou uma das principais ferramentas do governo para a assistência humanitária.
Rondó em visita ao Haiti: "Brasil trabalha para que haitianos assumam o país o quanto antes"
Em entrevista ao Opera Mundi, o diplomata brasileiro analisou a estratégia do soft power e explicou porque o Brasil deve ser generoso com o resto do mundo, mesmo com parte da população brasileira vivendo na pobreza.
Qual é a filosofia humanitária do Brasil?
Tentamos mudar alguns paradigmas a partir da experiência em sete anos e meio de governo Lula. Primeiramente, a assistência humanitária precisa ser sustentável. Respeitamos os conceitos da ONU (Organização das Nações Unidas) que prevêem independência, neutralidade e imparcialidade. Também fazemos questão de respeitar os critérios da conferência da ONU sobre o meio-ambiente em 1992, em que ficou definida a necessidade de a ajuda ser social, econômica, e ambientalmente sustentável.
Na prática, o que esses pontos significam?
Que privilegiamos a compra de alimentos, cobertores e outros produtos locais para que a economia funcione de novo. No caso do Haiti, queremos comprar itens da agricultura local, especialmente leite e arroz. Barack Obama acabou de se comprometer com a mesma lógica, o que nos deixou felizes. No entanto, alguns países do hemisfério norte costumavam enviar aos países em crise excedentes de suas produções, muitas vezes de forma indiscriminada, o que provoca grandes danos à agricultura local. O próprio ex-presidente norte-americano Bill Clinton se desculpou pelos subsídios que deu aos arrozeiros norte-americanos, que prejudicaram a agricultura haitiana inundando-a com excedentes de arroz. A assistência humanitária não está isolada de um contexto ligado ao comércio internacional.
Outro paradigma que precisamos quebrar é o uso de termos como doador e receptor – ambos ultrapassados. Somos o país de Paulo Freire, intelectual que superou essa dicotomia na educação. Portanto, o mesmo deve ser feito em qualquer relação que envolve Estado e pessoas. Preferimos os conceitos de parceria, troca de experiências.
O que o Brasil recebe de concreto com a ajuda humanitária?
No caso do Haiti, estamos interessados em aprender a tecnologia Lèt Agogo (“muito leite”, em creole), criada pela ONG haitiana Veterimed e que apoia a produção, propaganda e venda de laticínios. Funciona de maneira excepcional e queremos levar essa tecnologia – ganhadora de prêmio internacional – para o Sudão. Além disso, percebemos que tornar a escola o centro da assistência humanitária é fundamental. A alimentação é o que atrai as crianças para as escolas nos países pobres. No Haiti e Burundi criamos uma iniciativa idêntica ao Bolsa Família brasileiro, em parceria com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Ou seja, uma ajuda financeira é dada às famílias, contato que as crianças frequentem a escola.
O nível de escolaridade no Haiti aumentou?
Essa estratégia começou há três anos e ainda é difícil medir o efeito na escolaridade, devido a tudo o que aconteceu no Haiti. Mesmo porque muitas escolas não têm professores e sim voluntários, que tentam manter um espaço de socialização para as crianças, tirá-las do espaço familiar, carregado de traumas.
O que pode ser dito frente às críticas de que o Brasil não deveria ajudar outros países, enquanto a fome ainda existe aqui?
Entendo perfeitamente a preocupação. No entanto, não podemos olhar somente a árvore, mas sim a floresta. O Brasil é a oitava economia do mundo hoje, portanto, a responsabilidade é imensa. A Constituição estabelece que a política externa brasileira deve se basear na promoção dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, precisamos lembrar que o direito à alimentação é universal por definição, não está vinculado à nacionalidade. Quando há fome na Somália, somos responsáveis. É verdade que, apesar da evolução com o governo Lula – 24 milhões de brasileiros saíram da miséria –, o nível de desigualdade é grande, mas isso não pode justificar uma omissão internacional.
A população brasileira entende isso?
Acho que sim. Cada vez que acontece uma grande tragédia internacional, onde o Brasil se envolve, temos dificuldades para administrar o volume de doações. As contas abertas pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal somam mais de cinco milhões de dólares, um valor doado por pessoas, não empresas. Além disso, há ofertas de ajuda financeira e trabalho voluntário. Institutos de ensino se oferecem para enviar estudantes para estudar no Brasil e movimentos sociais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) ajudam na recuperação da agricultura.
A participação da sociedade civil é essencial, algo que tem a ver com a formação étnica da população brasileira. Se acontecer alguma coisa no Oriente Médio, isso nos atinge diretamente, pois há aqui 17 milhões de descendentes de árabes. Também temos milhares de descendente de judeus, somos o maior país italiano fora da Itália, a terceira cidade japonesa do mundo etc. Tudo o que está acontecendo no mundo nos diz respeito.
A melhora da situação econômica no Brasil ajudou a gerar mais generosidade?
Sem dúvida. Eu lembro sempre do aviso de segurança no avião, que pede para primeiro colocar a máscara e depois, ajudar o passageiro vizinho. Se você não consegue se manter de pé, como irá ajudar os outros? Agora que temos condições de ajudar, coordenar é o que mais importa. Países como Haiti ou Sudão não são pobres. Você precisa apenas coordenar a sociedade junto com o governo para poder alavancá-los novamente.
Nós detectamos movimentos na sociedade civil cada vez mais interessados por esses temas. No caso do Haiti, queremos coordenar o trabalho com o governo haitiano, pois um dia sairemos de lá e os haitianos devem assumir o país o quanto antes.
Há também uma crítica sobre o governo não fazer distinção entre administrações democráticas ou não...
Temos critérios claros: concordamos como os 192 países da ONU, que a assistência humanitária precisa ser regida pelos princípios da humanidade, neutralidade, imparcialidade e independência. É isso o que conta.
As grandes potências estão incomodadas com o novo papel do Brasil?
Acredito que não, até porque a crise financeira demonstrou que ninguém é auto-suficiente. Na Europa, embora muitas pessoas pensem assim e rejeitem a imigração, a ajuda é necessária. É mais do que urgente que Brasil, China, Índia e África do Sul assumam responsabilidade internacional coerente com o tamanho de suas sociedades.
Funcionamento
Quais são as ferramentas do Brasil para financiar a assistência humanitária?
A CGFome funciona dentro do Itamaraty, órgão que coordena outros 14 ministérios, ou seja, praticamente a metade do governo brasileiro. Em 2007, o orçamento da unidade era de apenas 2,4 milhões de reais e hoje é de 50 milhões. Além disso, computamos tudo o que foi direcionado ao Haiti: 265 milhões de dólares. São recursos extraordinários. Esse ano iremos enviar doação de alimentos de 300 milhões de dólares à Somália, Coréia de Norte e vários outros países, sendo 10 milhões somente para Gaza.
O dinheiro para a cooperação técnica está incluído no orçamento?
Não, nesse caso é a ABC (Agência Brasileira de Cooperação) que organiza a cooperação técnica, com outro orçamento de 50 milhões, e também depende de Itamaraty. O orçamento da ABC pulou de 18,7 milhões de reais em 2006 para 52,6 milhões de reais esse ano, enquanto a equipe passou de 90 para 160 funcionários de 2009 para 2010. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) também é fonte de dinheiro: a instituição empresta a empresas brasileiras para que possam investir em zonas onde não teriam empréstimos comerciais tradicionais. Até agora, o BNDES trabalhava sozinho, mas buscaremos estabelecer uma coordenação a partir desse ano.
A política de Estado atual é inalterável?
Esta é uma visão muito otimista. Esperamos que seja cada vez mais uma política de Estado, porém, a condução do governo é fundamental. Sem dúvidas, projetos diferentes alocam recursos diferentemente. Sem hesitar, digo que a assistência humanitária feita hoje tem o espírito do Fome Zero, e esse programa foi criado pelo presidente Lula.