CAROS AMIGOS
Uma atriz comprometida com as lutas sociais
Participaram: Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Tatiana Merlino. Fotos Jesus Carlos
Conhecida por seu trabalho de atriz, no teatro, no cinema e nas novelas da TV Globo, Letícia Sabatella tem também uma sólidahistória de compromisso com os movimentos sociais, em especial o MST, e com as lutas em defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. Em 2003 participou do lançamento do jornal Brasil de Fato, no Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre; em 2007 foi solidária com a luta de Dom Luíz Flávio Cappio contra a transposição do Rio São Francisco; em 2008 dirigiu o documentário “Hotxuá” sobre os índios krahôs, no Tocantins. Participa de várias entidades e do Movimento Humanos Direitos, que reúne artistas, jornalistas e outros profissionais comprometidos com as questões sociais.
Nesta entrevista exclusiva para a revista Caros Amigos, Letícia Sabatella fala sobre a sua carreira e o que pensa do Brasil. Vale a pena conhecer as suas posições.
Tatiana Merlino - Vamos começar por onde você nasceu.
Letícia Sabatella - Eu nasci em Belo Horizonte, e com dois anos fui morar em Volta Grande. Meu pai trabalhava lá ajudando a construir a usina de Foz do Areia. Meu avô também era engenheiro e ajudou a construir o teatro Guaíra, em Curitiba. Meu pai veio de lá e conheceu minha mãe no sul de Minas, em Itajubá. Ela vem de uma família muito ligada à fazenda.
Hamilton Octávio de Souza - A família toda é de Minas?
De Minas... E sempre tinha essa questão, da saudade de terra, de fazenda, de natureza e eu sempre gostei. Meu pai conta que ele passou a infância em um sítio, com música, plantando... A tia que o criou atendia os pobres da região com homeopatia. Eles eram kardecistas. Ainda tem essa tradição na família do meu pai, na da minha mãe é católica, mas com esses valores. Meus pais sempre me levaram muito para a natureza, a gente sempre recolhia muito bicho em casa. Minha mãe tem uma habilidade enorme com plantas. E eles criavam plantas, pesquisavam flores, meu pai viaja e trazia uma semente diferente de algum lugar e sempre com a memória das avós que ainda estão vivas e trazem essa tradição. Em Curitiba, o quintal da casa da minha avó é o teatro Guaíra e em Itajubá, quando a gente ia para Minas mesmo, era a fazenda da família.
Hamilton Octávio de Souza - Onde foi a tua infância?
A minha infância foi nesses universos, de Curitiba e sul de Minas. Muita música, dança...
Hamilton Octávio de Souza - Você estudou onde?
Em Curitiba. Fiz formação de teatro e dança lá.
Hamilton Octávio de Souza - Você fez ensino fundamental lá?
Tudo lá. Fiz um pouco em Belo Horizonte, até os 2 anos e em Volta Grande a gente estudou na vila com os operários. Minha mãe dava aula lá.
Tatiana Merlino - Você disse que tinha muita música e dança. Você estudou muita música e dança ou tinha na sua casa?
Tinha muita música em casa, minha mãe e meu pai sempre cantando. Minha mãe canta muito. Ela também dava aula para crianças da minha idade. Eles adoravam minha mãe porque era uma pessoa que sempre estimulava essa coisa de turma. Tinha esse colorido, em Itajubá a família também tinha um bloco de carnaval enorme, assim de rua. Cidade de interior, com muita coisa na rua, muita festa na rua.
Tatiana Merlino - E teatro, quando você começou a estudar?
Teatro foi em Curitiba, com 14 anos. Entrei em um grupo de teatro chamado “Alma Nua” que acontecia no colégio de uma tia minha, o Dom Bosco.
Hamilton Octávio de Souza - A tua carreira de atriz começa com este grupo de teatro?
A primeira peça que eu fiz foi com o grupo “Alma Nua”, o diretor era o Luiz Carlos Teixeira da Silva. Eu só cantava na peça. Foi em 85, eu tinha 14 anos, depois fui para o colégio para fazer teatro. Aí comecei a fazer aula no coral sinfônico do Paraná, depois a fazer faculdade de teatro e com dois anos de faculdade eu já sai de Curitiba para trabalhar.
Gabriela Moncau - Trabalhar onde?
Eu fui fazer “Os homens querem paz”, um especial da Globo.
Tatiana Merlino - E foi aí que você entrou para a Globo?
Foi. Primeiro a gente tinha um grupo também. A gente tocava em um bar e estava juntando dinheiro para tocar lá em Itapema. Aí me chamaram para fazer o teste para Teresa Batista, uma minissérie, que depois virou um especial. Depois eu tive que fazer uma novela, e tive que mudar para o Rio mesmo.
Tatina Merlino - Você sempre quis trabalhar na televisão?
Não era o que eu tinha como objetivo não. Como eu estava em Curitiba e havia uma distância, não é uma coisa que você pensava: “ah televisão é ali”. Para mim não era assim. Era bem distante. Mas a gente tinha influência de grandes artistas, de músicos, de escritores, de poetas, de teatro, de cantores de ópera. Então eu acho que a gente perseguia um pouco essa formação. Mas acho que antes de pensar em televisão, perseguíamos algumas pessoas que tinham lá mesmo, como atores bons e montagens que a gente via, trabalhos que tinham na assinatura um sotaque cultural de lá. Tinha uma coisa bastante universal, como as óperas que a gente fazia o coro, os balé, muita música clássica... Era impressionante o quanto lotava o Guaíra para assistir ópera.
Hamilton Octávio de Souza - Quem era a tua referência de atores?
Ah! A gente tinha montagens lindas, o Marcelo Marchioro é um diretor que fez coisas que influenciaram muita gente, o Raul Cruz, um artista plástico impressionante que também fazia teatro, a Laura Schneider já era musa lá e tinha as montagens do Dalton Trevisan, de textos dele. Tínhamos muitas cantoras de ópera...
Hamilton Octávio de Souza - E na televisão quando foi que você começou?
Em 90.
Tatiana Merlino - E a primeira novela que você fez qual foi?
Foi o “Dono do Mundo”, em 91.
Gabriela Moncau - E você tinha quantos anos na época?
20 anos.
Tatiana Merlino - E como é que foi entrar para Globo? Como era a sua relação com os outros artistas e com os autores das novelas?
Neófito, coisa de quem estava vendo pela primeira vez e descobrindo aquilo. Eu sei que quando eu comecei a fazer o especial, que a gente foi para o Nordeste por 12 dias. Eu achei bem difícil, mas achei muito mágica a linguagem. Comecei trabalhando com o Luiz Fernando Carvalho e ele tinha uma proposta séria com televisão, super exigente. A novela foi muito interessante de fazer, mas eu não queria fazer ela naquele momento porque exige uma agilidade, porque o ritmo é de indústria. Tem uma qualidade dramatúrgica interessante. Muitas vezes tem novelas que questionam coisas que movimentam de um jeito a cabeça do grande público, e você pensa: “Nossa, é uma arte”. Só que o ritmo de se fazer é muito acelerado, né? Eu comecei fazendo a novela, aí no começo eu fazia cinco cenas por semana. Depois, na segunda semana eram 20 cenas por dia, muda completamente.
Não existe aquilo que você pensava de: “vou fazer uma peça, estudar meses, ler todos os livros daquele autor, ver filmes, vou me inspirar, ouvir música, vou me alimentar de coisas para entrar nesta personagem, construir esta história junto”. Fazer televisão é outra mágica. E é muito Commedia dell’arte, eu brincava com isso. Algumas novelas foram assim. Em “O Clone”, a gente montou uma trupe de Commedia dell’arte no começo e aí o texto entrava e a gente só ia brincando e improvisando. Ás vezes você consegue aproveitar dessa agilidade para fazer alguma coisa com essa linguagem. O Amir Haddad até fala que tem certas personagens na televisão para as quais tem que se pagar taxa de insalubridade. Você adentra em uns universos em um ritmo e com um tratamento que fica às vezes até superficial em virtude do que exige de conhecimento.
Tatiana Merlino - Quantas novelas você já fez?
Não sei, tem que contar...
Tatiana Merlino - Mais ou menos, 15?
Não, deve chegar a 10.
Gabriela Moncau - Você disse que tinha o teatro muito mais como referência. Por quê você fez essa escolha de entrar para a TV?
Era uma situação de que para ter uma independência como ator você não recusa personagem. Surgiu um trabalho em uma minissérie, que é uma coisa legal. Então eu pensei: vou fazer uma minissérie e depois volto e continuo estudando, e aí outro dia eu vou lá e faço outra minissérie. Só que aí não foi assim, né? Eu acabei tendo um contrato, tive que cumpri-lo, e aí virou uma novela e não foi uma minissérie. Mas depois disso eu parei, fiquei com um contrato só com obras que eu fizesse e parava mesmo, por conta própria, para estudar. Claro, tem momentos legais fazendo a novela e eu tive condição de estudar com esse dinheiro.
Tatiana Merlino - O que você estudou nestes intervalos?
Ah, de tudo que eu pude. Todas as oficinas que apareciam que dava para fazer de pessoas legais de voz, de corpo, várias coisas, de palhaço. O próprio documentário foi um estudo, né? Ir até a tribo lá, terminar a faculdade que não tinha terminado. [Letícia dirigiu o documentário “Hotxuá”, filme sobre a tribo indígena Krahô, localizada no estado de Tocantins.
Gabriela Moncau - Que época você foi lá para Tocantins?
Quando eu fui lá pela primeira vez, a minha filha Clara tinha dois anos. Foi 95 ou 96, eu acho. Aí depois eu fui para filmar em 2000 e alguma coisa.
Gabriela Moncau - Você foi direto para a tribo dos índios krahô?
Dos índios krahô...
Gabriela Moncau - E por que você foi a primeira vez?
Para conhecer, e a gente foi fazer uma peça de teatro também. A gente ficou em um sítio trabalhando, estudando, trabalhando butô e fazendo estudos. E fomos estudar temas indígenas. Daí tivemos a oportunidade de conhecer esta tribo dos krahô. Passei por vários rituais. Foi uma experiência fascinante ver uma cultura milenar, que na época estava extremamente abandonada. Eles estavam perto de uma cidadezinha, Itacajá, e os índios eram muito malvistos como pedintes, mendigos... Eles não sabiam quem éramos, então passamos despercebidos até que as pessoas da cidade descobriram que estávamos lá e começaram a querer ir para a aldeia. Aí eles começaram a perguntar: “vocês aparecem na televisão, vocês são artistas?” Só que eu estava ali diante de uma cultura milenar, aquilo doía de ver. As coisas mais utilitárias deles têm bomgosto. Tudo é arte, o tempo inteiro é arte. Quando tem que fazer um ritual para comer uma comida em conjunto são três dias de cantoria seguida. Você vai até entrando em transe de ouvir aquilo.
Hamilton Octávio de Souza – É um documentário, é isso?
É um documentário.
Hamilton Octávio de Souza - Qual é o nome do documentário?
“Hotxuá”, que é o palhaço sagrado da aldeia.
Gabriela Moncau - Você pode contar um pouco dessa experiência? Vocês foram para lá já para filmar o documentário com essa ideia?
Não, a primeira vez não. Fui para conhecer a aldeia e conhecer danças sagradas indígenas.
Hamilton Octávio de Souza - Isso foi iniciativa de quem?
Isso foi iniciativa minha. Eles me pediram ajuda para fazer registros.
Hamilton Octávio de Souza - Foi você quem dirigiu o documentário?
Eu e o Gringo Cardia.
Hamilton Octávio de Souza - E esse documentário passou em algum lugar?
Ele está percorrendo festivais em vários lugares fora do Brasil e aqui também já foi para alguns festivais. Foi até para um festival muito bacana agora, o de Cuiabá, que é um festival com indígenas. Fomos para a Bahia, para Tiradentes, agora eu estou indo para Porto Velho onde eu vou encontrar outras etnias.
Hamilton Octávio de Souza - E essa experiência, o que significa?
Até como atriz eu aprendi fazendo esse documentário. Você vai pesquisar o palhaço originário de uma tribo e ao mesmo tempo faz a edição disso. Você vai lidar com ilha de edição, tecnologia de HD que é alta definição. Então você junta dois pontos, consegue compreender e amplia horizontes também. Em uma experiência destas você aprende muito. Também é uma contrapartida social poder fazer isso. E para mim é um ganho. Fazer este documentário que é um estudo fantástico.
Tatiana Merlino - Você tem outros projetos paralelos ao seu trabalho como atriz na televisão?
Eu acho que sim. Existe vida em toda parte, fora da Globo. Mas tem várias coisas que de algum modo, ali eu tive a sorte de também ter um canal para explorar, como quando a gente fez o “Hoje é dia de Maria” que também tinha um trabalho de corpo, de voz, assim como o do teatro... Mas todos os projetos que eu tenho são relacionados a isso. Eu gosto muito de trabalhar com as comunidades, de juntar essa relação do trabalho da terra junto com o trabalho artístico, mas usar também para preparação para algum trabalho de canto, ou de corpo, ou de teatro. Então eu acho que no futuro eu tenho vontade de juntar essas coisas.
Tatiana Merlino - Qual você acha que é a função social do artista?
Ah, essa é uma pergunta superlegal. O palhaço da aldeia é tão importante quanto o cacique ou o pajé para a sobrevivência da aldeia. Eu gosto muito de usar o “Hotxuá” como referência. Ali a autoestima da aldeia se preserva graças à ação dele e é um espaço de transcendência das dificuldades, de transcender os limites que você acaba tendo que absorver na sua existência, assim como os limites de você conviver numa estrutura social. E o ator, mesmo com a proposta do entretenimento do palhaço, do humor, ele vai propor essa transcendência de muitas opressões também. Ele ter um senso crítico sobre várias autarquias e muitas posturas autoritárias podem ser quebradas ou bloqueadas. Eu acho que pode ser espaço para reflexão. Na Grécia Antiga eles receitavam até peças de teatro para os doentes. Na aldeia, o documentário mostra isso muito claro: ensinar você a absorver coisas difíceis para a sociedade. O palhaço às vezes ensina você a amar coisas que são muito diferentes. Muitas vezes ele é a figura que vai encarnar esse não tão bem visto, ensina o certo através do errado, acho que mantém a integridade em manter a auto estima.
Hamilton Octávio de Souza - Esse tipo de trabalho tem grandes contradições? Como você vê o papel da telenovela?
Agora eu fiz uma novela com uma autora que não vê sentindo em fazer novela que não tenha alguma campanha, alguma proposta social que é a Glória Perez. Nas duas novelas que eu fiz com ela, “O Clone” e essa de agora, em algum momento ela vai propor reflexão. Quando ela foi falar dos intocáveis da Índia, ela pensou em casos de esquizofrênicos que vê como casos de intocáveis também. Eu vejo ali um potencial conscientizador muito forte em uma novela, ou alienador. Eu acho que é como tudo na nossa sociedade, a gente tem as duas possibilidades.
Hamilton Octávio de Souza - Dos vários papéis que você fez, qual te agrada mais? Qual novela você acha que tem uma mensagem que combina mais contigo?
Quando eu fiz “O Clone” foi muito legal fazer humor. Eu tinha mais vontade de fazer comédia de costume também, e achei muito legal fazer. Nessa novela especificamente aumentaram o número de pessoas que procuraram se tratar de dependência química.
Hamilton Octávio de Souza - Eu não me lembro do “Clone”. Que personagem você fazia?
Eu fazia uma mulçumana que tinha uma identificação enorme com as donas de casa, com as mulheres brasileiras. Apesar dela ser mulçumana, vivia com problema com relação ao marido poder ter outras esposas.
Tatiana Merlino - E como foi fazer essa última personagem que era uma vilã?
Ah, deu trabalho.
Tatiana Merlino - É a primeira vilã da sua carreia?
De uma novela é. Recentemente eu fiz uma diaba sexual no “Hoje é dia de Maria”, mas era um papel muito pequeno.
Tatiana Merlino - Então foi muito trabalhoso?
Foi. Tinha que pensar demais, e eu não penso muito. A personagem pensava muito mais que eu para fazer as coisas, então eu tinha uma baita dor de cabeça. Acho que era um personagem para fazer em duas horas ali, como no teatro. Mas nesse ritmo assim de TV, ter que controlar as emoções para poder ter a frieza da personagem, isso era muito difícil, bem difícil.
Tatiana Merlino - Queria voltar a falar daquilo que conversávamos sobre o papel social do artista. Como é que você vê hoje a atuação social dos artistas no Brasil?
Bom. Eu acho que tem trabalhos incríveis. Os próprios movimentos sociais têm artistas fantásticos. Acho que o tempo inteiro você vê a arte de um jeito sutil, de um modo poético, metafórico que seja. Mas você vê a arte, você vê muitos artistas, muita música, transformando e fazendo os movimentos caminharem... Não sei se você está perguntando sobre...
Tatiana Merlino - Os artistas do “mainstream”.
Aí é uma faixa estreita do que é o artista.
Hamilton Octávio de Souza - O artista tem um papel bastante privilegiado, ele é reconhecido, é uma figura pública, alguém que pode, dependendo da posição, influenciar em um sentido ou no outro… Qual a tua visão dos artistas hoje na sociedade que a gente vive?
Eu acho que é reflexo da sociedade que a gente vive, que tem de tudo. Eu conheço vários artistas lá no Humanos Direitos que estão se formando, buscando conhecer as coisas não só pelo meio de comunicação mais imediato.
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