Por que a
criminalidade é difícil de ser baixada ou combatida em um país que nem o
Brasil?
Há de se
recordar que não é de hoje que o Brasil é um país violento. Fomos frutos de colonização
e escravização forçadas; sofremos com os poderes dados aos titulares das
capitanias hereditárias, aos latifundiários e aos coronéis da política;
vivenciamos dolorosamente a constante omissão estatal que permitiu privilégios
a poucos. Tais condições nos fizeram crer que o Estado era um vilão e não um
assegurador de direitos. E aí está uma das causas desse grave problema de
criminalidade generalizada.
Mas não
se pode esconder que hoje em dia a violência assume proporções alarmantes, tornando-se endêmica. São
muitos assassinatos, muitos estupros e muitos roubos, o que acarreta a sensação
de segurança próxima a zero em todas as camadas sociais.
Dessa
forma, duas questões se colocam. Como combater a criminalidade e quais são as
razões de seu alastramento no seio da sociedade? Embora não seja especialista,
mas pensador da questão, inclusive sob a ótica dos direitos humanos, ouso expor
minhas conclusões.
Antes de
mais nada, cabe deixar claro que a criminalidade não se limita apenas aos
crimes considerados violentos, como homicídio, estupro e roubo, dentre outros.
Ela também se faz presente quando compramos produtos que não pagam direitos
autorais (piratas) ou impostos (das barraquinhas de “contrabando”), que são objeto
de subtração (feiras do rolo) ou até mesmo quando tentamos dar um agrado para
evitar alguma penalidade e coisas do tipo (corrupção ativa).
Na
verdade, a cultura do brasileiro é de aceitação das pequenas infrações, daquela
criminalidade não violenta. Denominamos esses crimes, genericamente, de menor
gravidade, como se pudessem ser colocados no mesmo patamar daqueles que são
encaminhados aos Juizados Especiais Criminais. Nos tempos atuais, e não só no
Brasil, até a corrupção tem sido aceita e praticada (em maior ou menor grau) no
seio da sociedade e do Estado.
Esses
crimes não violentos, que aceitamos no dia a dia, corroem a nossa estrutura
social e democrática e, por via direta, nos conduzem à criminalidade que afeta
a nossa integridade física e que nos assusta. Esses crimes ainda mais graves,
os violentos, são utilizados de forma oportunista e insensata pelos “reaças” de
plantão para pregar o ódio aos direitos civis e humanos, como se esses, e não a
inércia estatal e de todos nós, fossem os responsáveis pela situação calamitosa.
A aceitação
dos pequenos crimes nos dá a ideia de pertencermos a um país maleável,
tolerante e humano, certo? Errado. Tolerável? Só se for com a criminalidade. De
maneira alguma isso significa ser tolerante ou preocupado com as pessoas e os
seus problemas, já que os problemas das pessoas não são tratados no seu cerne.
Não são resolvidos.
Quando o
Estado permite a construção de casas em áreas proibidas, como mananciais, está
apenas a fomentar a criminalidade. Essa complacência estatal não significa
respeito às pessoas, até porque a maioria delas pagará o preço dessa inação
estatal que beneficiará apenas um pequeno grupo (e tão somente de forma
imediata, pois a médio prazo esse grupo também sofrerá consequências), com
prejuízos indescritíveis, inclusive de ordem ambiental.
Quando o
Estado permite que em suas ruas se instalem dezenas de pequenos centros
comerciais destinados à venda de produtos objetos de descaminho (não pagamento
de impostos de importação e outros), está a permitir a prática generalizada do
desrespeito aos tributos, quebrando a lógica da responsabilidade individual e
coletiva pela contribuição financeira forçada para a redistribuição de renda. O
efeito pedagógico da cobrança e da importância dos tributos resta enfraquecido
com a inconcebível inação estatal.
Essa
tolerância com essa criminalidade não violenta não faz bem à sociedade.
Beneficia grupos, fomenta a corrupção e favorece a formação e união de grandes
organizações criminosas nacionais, inclusive com grupos de outros países. Daí
surgem organizações criminosas perigosas que ameaçam diuturnamente o Estado (não
os políticos complacentes com esses crimes) e a todos nós.
A
tolerância com as pessoas, fim maior do Estado, se dá com a aceitação de cada
personagem da cidadania, e, por consequência, com o respeito aos seus direitos,
e não com a inadmissível e demagógica facilitação ou permissividade com
condutas criminosas.
Há que se
notar que a permissividade do Estado com pequenas violações afeta direta ou
indiretamente a própria estrutura social, além da ordem democrática e o bem
estar de todo o grupo social. Ou seja, os pequenos e grandes crimes afrontam a
estabilidade que a segurança das pessoas requer.
De uma
pequena violação aqui, parte-se a outra até chegar ao caos atual, inclusive com
a corrupção generalizada no meio empresarial e político. Nova Iorque conseguiu,
com êxito, a redução da criminalidade e do uso de drogas tão prejudiciais como
o crack, com a política da tolerância zero.
Embora
seja considerada política de direita, a tolerância zero é importante para a
preservação dos valores e ideais democráticos, mas deve ser dar com o crime, e
não com as pessoas, repito. Assim, preservará o seu caráter humanista.
A pessoa
ter direito à moradia digna não permite que o Estado seja complacente com a
invasão de área de mananciais, por exemplo. Há uma estrutura mínima a ser
respeitada, a fim de assegurar a manutenção da ordem democrática, do bem estar
coletivo e da estrutura social que possa nos levar a um desenvolvimento
econômico inclusivo.
É
evidente, ainda, que as diferenças sociais, principalmente no que toca à distribuição
de renda e à efetiva escolaridade, são fatores sérios e importantes a serem
estudados e aplicados para o efetivo combate à criminalidade.
Também
não se pode ignorar que vivemos numa sociedade materialista e capitalista de
consumo, agravada com o neoliberalismo. Hoje, há uma absoluta preocupação com o
material, com o ter, com a aparência e com tudo o que há de futilidade. Nessa
sociedade hodierna, todos querem consumir. Todos querem exibir o que aparentam
ser e também o que possuem, enquanto a preocupação com a espiritualidade, com a
história, com a cultura, com a educação e com o outro e a própria a essência do
ser humano são relegadas ao último plano de importância, tanto pela sociedade
como, absurdamente, pelo próprio Estado, que torna-se complacente ao não agir
de forma eficaz na educação, na cultura e nas propagandas nos meios de
comunicação de massa para quebrar a imagem de que só o consumismo interessa à
formação das pessoas.
Como é
perceptível, há a necessidade de uma readequação de rumos. O Estado deve estar
presente, ser eficaz, limitar as ações dos particulares, agir para fazer
garantir os direitos dos cidadãos e não tolerar ações que possam não apenas
afrontar a integridade física, mas a própria estrutura do Estado. O Estado não
deve subsumir-se ao capitalismo e neoliberalismo (assim como não deveria
fazê-lo no comunismo, se esse fosse o sistema econômico vigente). Deve primar
pelas campanhas que fomentem o desenvolvimento humano, a fraternidade e a responsabilidade
social, sempre.
Ao lado
disso, e de forma imediata, o Estado deve adotar ações pontuais na área social,
visando diminuir a má distribuição de renda e a escolaridade ausente ou de
baixa qualidade. Deve estruturar-se para garantir um bem estar social.
Assim
como o Estado evoluiu para tornar-se (ou pretender tornar-se) laico, ou seja
desvinculado de qualquer ordem religiosa, deve também deixar de se
preocupar com questões próprias do sistema capitalista, próprias das pessoas
físicas e jurídicas, como a mera eficiência, para, por meio de suas ações,
garantir os direitos humanos que devem viger sob qualquer ordem, valorizando
ações ligadas à visão humanista, educação e integração social, limitando dessa
forma qualquer tendência de que o Estado deveria ser tão somente governado por
um “bom administrador” do dinheiro público. Como se sabe, as ações próprias do
Estado não podem visar ao lucro ou evitar prejuízo por si só. O Estado deve
agir para ser justo, primando pela Justiça no seu sentido mais amplo.
Nada
contra o capitalismo, mas o Estado não pode se render a valores que acabam por
corromper não apenas pessoas, mas a própria estrutura do Estado e a sociedade.
Cabe a
cada um de nós mudar nossa forma de agir, assim como cabe ao Estado atuar em
inúmeras vertentes. De nada vale ter polícia fortemente armada e uma
inteligência eficiente, se não atuar em todas as pontas desse enorme iceberg.
Não há
como diminuir a criminalidade sem olhar o todo, desde a responsabilidade de
cada cidadão quanto à do próprio Estado. Questões e ações como essas são
cruciais no verdadeiro combate à criminalidade e seus efeitos perversos a
todos os cidadãos e à própria democracia. Não é pouca coisa e nada poderá ser
resolvido de pronto, mas há esperanças. Para isso, os governantes devem ser
realmente sérios, e não apenas aparentarem sê-los.