Quão alentadora é a entrevista de Antônio Bispo à Folha de São Paulo, intitulada “Esquerda e direita dirigem o mesmo trem colonialista, diz quilombola Antônio Bispo”.
Bispo já foi político e escritor e deixou de votar em 1998, quando se desvinculou do movimento sindical. Hoje ele participa da comunidade Saco do Curtume, no Piauí, em defesa dos povos quilombolas.
Para o entrevistado, colonizar, significa retirar a identidade, dando uma conotação diferente à vida. Para ele é necessário fazer contraposição ao pensamento colonialista e eurocêntrico.
Ele diferencia decolonialidade de contracolonialismo. Aquele é a luta dos que foram colonizados contra toda a herança colonialista, o que inexiste na prática, já que os seus pensadores só leem autores europeus, ou seja, vivenciam a vida dos colonizadores e não do povo oprimido, colonizado.
Já o contracolonialismo é um movimento dos que nunca foram colonizados, como os quilombolas.
Cosmofobia é um termo utilizado pelo entrevistado para definir a desconexão entre a humanidade e a natureza. A humanidade descrita na Bíblia se opõe à vida harmônica com a natureza, o que não ocorre nos quilombos, onde a harmonia com a natureza é uma realidade básica.
O racismo, como forma discriminatória e segregacionista, é elemento vital do colonialismo.
Muitos programas sociais, como o Minha Casa, Minha Vida e o Fome Zero não visam libertar, mas prender o humano àquela forma que lhe foi concedida. Não há planejamento na vida e na felicidade. Há um pensamento maior na economia de escala. Não há o que festejar.
Para o Brasil mudar, não bastam os discursos só aparentemente antagônicos da esquerda e da direita, que seguem o mesmo trilho colonialista. É necessário que se ouçam o quilombola e o indígena.
E desde quando quilombolas e indígenas ditam regras, costumes, valores? Quando os ouvimos? Juruna foi o primeiro deputado federal indígena e era alvo de chacota e piadas discriminatórias, mas, por mais que tentasse, não era ouvido. Era, no país de tantas Nações indígenas, ridicularizado.
A esquerda moderna globalizou-se demais, em pensamento e atitude.
Hoje já não há esquerdas tão sonhadoras como anos atrás. Parte da esquerda se rendeu, talvez sem perceber, ao capital financeiro, ao colonialismo e ao imperialismo. É o caso das esquerdas europeias, com raríssimas exceções.
O PT é muito grande para generalizações, mas o que temos visto é um partido neoliberal com algumas propostas libertárias na área dos costumes.
Até o PSOL tem um lado que se pretende moderno, mas que é na verdade uma rendição ao modus operandi do império aos países eternamente visto como colonizados.
Sou plenamente favorável à liberdade de costumes e do respeito às minorias, mas isso está umbilicalmente ligado à defesa de valores muito próprios da esquerda, ainda que ela pose de conservadora nessa área.
O conservador Vargas foi o que deu às mulheres o direito ao voto, o que, ainda que não soubesse estar agindo em prol da defesa do meio ambiente, criou Parques Nacionais. Foi ele que, ao mesmo tempo, ainda que sob o rol de conservador, criou a aposentadoria social, a carteira de trabalho e muitos dos direitos trabalhistas.
Os direitos individuais e sociais andam lado a lado com as conquistas tradicionais da esquerda, ainda que não se faça alarde sobre isso.
Quando a pauta é considerada muito moderna por parte de um público conservador, este migra para a direita, ainda que não concorde com o “modus operandi” de fazer política deste ou com a defesa de outros interesses desse grupo.
Por isso a esquerda tem que defender o todo, mas a partir de suas bandeiras históricas. Sem alarde, pode ganhar apoio para vitórias importantes em direitos sociais.
A esquerda tem que dar espaço aos pretos, às mulheres, aos homossexuais e transgêneros, mas também aos quilombolas e aos indígenas, que formam nossa identidade como país.
Na verdade, cada partido tem um lado da esquerda que deveria ser somado ao dos outros, para assim voltarmos a ter uma esquerda nova, forte, atuante e sempre sonhadora.
O PDT de Brizola também já não é mais de esquerda. Deixou de sê-lo pouco antes da morte do líder gaúcho.
O que temos de esquerda, hoje, está espalhada em alguns partidos políticos e em muitos intelectuais, que se intimidaram com a nova roupagem dessa esquerda, moldada pelos Democratas dos Estados Unidos e por partidos europeus há muito de centro ou centro direita, mas que se denominam de esquerda.
Partido de esquerda apoiar o fornecimento de armas para a continuidade da guerra na Ucrânia, data vênia, é entregar-se aos interesses do imperialismo ianque, ainda que sob o pretexto de libertar a Europa. Esquerda apoiar deliberadamente a invasão da Ucrânia também é ir contra o direito de não intervenção. O que a esquerda deveria fazer é buscar a paz, no que acertou o presidente Lula, bem orientado geopoliticamente pelo seu assessor especial Celso Amorim.
A Europa depende economicamente da Rússia, sua vizinha. Depende do seu gás e do seu petróleo. E o mundo depende da paz.
Já o Brasil, historicamente violento, com as bandeiras e a escravização dos indígenas, hoje tem a criminalidade nas ruas, a violência policial e a omissão do poder público em garantir a cidadania a todos, em especial às pessoas em situação de rua.
Um país que, ao mesmo tempo, não ouve parcela dos formadores da identidade brasileira: quilombolas e indígenas.
Para o Brasil ser grande e independente, tem que pensar por si, ouvindo o seu povo. A esquerda não deveria ter esquecido isso.