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Lembro-me dos finais de semana da minha infância em que visitava a casa dos pais de um amigo. Era tudo muito lindo, perfeito e gostoso. A família, imensa, era muito querida. A mãe não sabia o que fazer para agradar, e sempre preparava uns lanches magníficos, enormes, lindos e saborosíssimos, que para mim eram (e continuam sendo na minha lembrança) um banquete inesquecível.
O avô desse meu amigo, com uns 70 anos, era uma figura ímpar. Nunca vi alguém tão falante. E como falava! Magro e ágil, ele não parava de movimentar as mãos. Parecia um maestro regendo a sua fala com o movimento harmônico e incessante dos braços. E os brilhos dos olhos pareciam ser um farol a iluminar os gestos tão simbólicos. Não lembro a nacionalidade dele, para ser sincero, talvez fosse italiano, talvez espanhol ou português, talvez grego, não sei. Mas ele sempre nos contava, de forma vivenciada, histórias que até hoje permanecem coloridas e mágicas em nossas lembranças. Era tudo muito real em nossas mentes. E aquele senhor foi o melhor contador de histórias que eu já conheci.
Uma dessas histórias para mim permaneceu praticamente incólume, a salvo dos danos do esquecimento com o tempo, a da "lenda do homem camarão". Não confunda com a gíria colocada pelas mulheres em relação a alguns homens no começo dos anos 2000. Não é nada disso. Não tem a ver com atração física. Tem a ver com uma lenda de muitos anos atrás.
A Lenda do Homem Camarão se passa em um país à beira do mediterrâneo, onde alguns pescadores viviam da pesca do camarão. Um pescador sempre fazia a mesma coisa. Acordava às 4 da manhã, beijava a esposa e o filho e, sem comer nada, ia para a praia pegar o seu barquinho a remo e a sua rede para pescar aquilo que era sua especialidade: camarão.
Para lotar o barco, às vezes o franzino pescador dava sorte e voltava no meio da tarde, mas não era sempre. Muitas vezes ele tinha que esperar quase 20 horas para conseguir tal êxito. E quando voltava tarde, a sua esposa e o seu pequenino filho já estavam embalados naquele sono mais profundo.
Como ele era pobre, não permitia se dar ao luxo de comer camarão. Comia sempre os pequenos peixes que vinham junto em sua rede. Para ele e a sua família esses peixinhos ja eram um banquete delicioso.
Ele via os camarões como seres inalcançáveis. Aprendeu isso com o seu pai.
Numa dessas pescarias, porém, esse homem deu muita sorte. Ao soltar a rede, os camarões parece que pularam nela. Em poucas horas ele já estava de volta à sua cabana, com a sua mulher e o seu filho acordados à sua espera. O melhor é que todos poderiam fazer a refeição juntos.
Era cedo. Não chegava a duas da tarde. A mulher, feliz, procurou pelos peixes, mas achou apenas dois bem pequenos que mal dariam para alimentar o seu gatinho, sequer. Ela perguntou ao marido o que acontecera, e ele respondeu que viu um verdadeiro milagre, com uma chuva de camarões na rede, o que deve ter espantado os peixes.
Como ele estava muito feliz, esqueceu os dogmas passados pelo seu pai e quis fazer a alegria da esposa e do filho. Propôs que reservassem um bom punhado de todo o camarão pescado para a sua refeição. E para isso, abririam uma boa garrafa de vinho branco, ou será verde?
A esposa olhou feliz, bem como o filho e todos se reuniram naquele cantinho reservado à cozinha.
Todos ajudaram, cortando a salsa, picando o alho, limpando o camarão e preparando o fogão a lenha. Fizeram aquele camarão mais tradicional, frito, com alho e salsa. Que delícia que ficou! Hummmm... Dá para sentir o cheiro do alho em cima do camarão, como se fosse aqui.
A família se empanturrou de tanto comer, e o pai de beber. E adormeceram sem perceber.
A criança, ao acordar, foi procurar a mãe, que estava deitadinha em um canto da cama, mas não viu o seu pai. Preocupado, chamou a mãe e ambos saíram à procura do pai pescador.
Devia ser umas 8 horas da noite. Tudo estava escuro. Naquela vila de pescadores as pessoas dormiam cedo, por volta das 19 horas.
Procuraram pelas ruelas, pelas calçadas, pela areia do mar, e nada! De repente o menino vê o pai, ao longe, caminhando em direção ao mar, grita pelo seu nome, mas isso não impede que ele mergulhasse na água gelada. O menino sentou-se e esperou ali na beiradinha da praia, e o pai não saia do mar. O que o iluminava era a lua cheia, enorme e brilhante. A pequena criança continuou a esperar, e nada. Já desesperada, começou a gritar, quando então a sua mãe que estava afastada, veio correndo ao seu encontro. A mãe, que também não sabia nadar, se pôs a procurar o marido. Os olhos do pequenino filho, sem qualquer timidez, não paravam de lacrimejar.
No dia seguinte os pescadores amigos batem na cabana e chamam pela mulher. Ela abre a porta, conversa com eles e vai até a praia. Lá, ela vê o que parece ser o marido, mas com uma pele vermelho escuro, inchado, com uma pele grossa quase escamosa. O corpo todo estava repleto de manchas vermelhas escuras. Mas era ele. As roupas, a cor do cabelo e a compleição física indicavam que era o seu marido, embora a semelhança fosse bem próxima de um ... camarão.
O menininho ao ver o pai estirado na praia foi correndo, chorando, e o abraçou, permanecendo ao lado de sua mãe que também estava agachada. Os outros pescadores formaram uma roda e começaram a entoar um canto com o nome do pai do garoto.
O choro não pode ser contido, e choveu como nunca naquela vila esquecida pelos mapas da antiguidade.
Passada a comoção, ninguém mais conseguiu pescar um único camarão naquela localidade. E assim continua até os dias atuais.
Dizem que os antigos acreditavam que aquele bom pescador, por quebrar um juramento feito ao seu pai de jamais comer esse bicho que para eles era sagrado, teria se transformado em camarão ao entrar no mar, após comê-los. Daí o nome A Lenda do Homem Camarão.