Como advogado criminalista que fui por mais de 12 anos, sempre me deparei com dois princípios maiores, o do direito à vida e o do direito à liberdade, ambos protegidos constitucionalmente como fundamentais ao Estado Democrático de Direito.
Como advogado, embora muitas vezes entrasse em dilema pessoal e de consciência, empenhava-me na luta pelo direito à liberdade, pelo direito de ir e vir, pelo direito à liberdade de locomoção. Para mim, esse era o princípio mais sagrado ao advogado de um acusado, o de lutar pela liberdade, seja de expressão, seja de locomoção. E chego à conclusão de que realmente esse é o papel do advogado, lutar pela liberdade. A luta pelo direito à vida não cabe inicialmente ao advogado, a não ser que o Estado queira ceifá-la do cliente. Nesse caso, então, ao advogado caberá não só lutar pela liberdade, mas pela vida do seu cliente.
Não vendo o mundo sob o prisma exclusivo dos advogados, constato que nas mais diversas atividades, privadas ou públicas, seja de médico ou até mesmo de juiz, a prevalência será outra, assim como ao próprio Estado, o de assegurar o direito à vida.
Não tenho dúvida alguma de que, para a vida em sociedade, o que deve preponderar é o direito à vida, o mais basilar de todos, sem o qual não existe igualdade, liberdade ou qualquer outro direito assegurado por norma constitucional. A vida, digamos assim, é o direito básico, sem o qual não existiria a raça humana.
As ditaduras, que cerceiam a liberdade, muitas vezes radicalizam e partem para a tortura e, em seu grau mais extremado, até a própria limitação do direito à vida. E aí surge uma séria violação do mundo jurídico que pode ensejar pedidos de reparações administrativas e judiciais muitos anos após a barbárie.
Indo mais diretamente ao tema proposto, muitos jovens e juristas acham que o direito à liberdade é sagrado, ilimitado. Nisso se incluiria o direito à experimentação e uso de substâncias alucinógenas, os chamados entorpecentes.
Realço o entendimento de que o direito à liberdade não é absoluto e nunca foi. Sofre ele limitações claras, sejam expressas ou implícitas, seja ainda pelos deveres ou penalizações atribuídos em normas, seja quando o exercício do direito de liberdade de um sujeito invade o espaço do direito à liberdade de outrem ou quando pode ensejar a afronta ao bem maior, o do direito à vida.
Em grau de prioridade e de grandeza, entendo que a própria norma maior, a Constituição Federal, fez a escolha pelo direito à vida em detrimento dos demais, tanto que em seu artigo 5º, “caput”, cita antes de qualquer outro, o direito à vida, como se percebe pela transcrição do seu “caput”: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Inviolabilidade do direito à vida? É a determinação de que a vida seja assegurada pelo Estado. É, então, um compromisso do Estado Democrático brasileiro com a vida de nós seres humanos. E não é a qualquer vida, incluindo-se aí aquela sem qualidade, é, sim, a vida com dignidade (art. 1º, III, da Constituição Federal).
Voltando à questão do uso de drogas, muitos imaginam que sua discussão envolva apenas o direito à liberdade de escolha de experimentar e usar ou não as substâncias ilegais. Não. A questão vai mais além, envolve antes de tudo o direito à vida, nosso bem maior, e não menciono qualquer preceito religioso, não, mas a própria Constituição Federal, mais precisamente o seu artigo 5º, “caput”.
A droga não apenas mata, mas também retira a dignidade do seu usuário e dos co-dependentes, seus familiares e amigos mais próximos. Ela destrói lentamente a sociedade e seus valores. E não digo apenas valores de ordem moral, cujas afrontas mais visíveis seriam a corrupção e a degradação de comportamento sexual. Me refiro a valores ainda mais importantes, os de nossa civilização: liberdade, dignidade e igualdade.
É óbvio que não haveria tal discussão se as drogas não matassem, mas infelizmente matam. Matam corpos e, poeticamente e religiosamente, também almas. Assim, contrapondo-se a liberdade à vida, cabe ao Estado priorizar um direito ou outro. E a nossa Constituição, nossa lei maior, já fez esta escolha, de forma clara (art. 5º, “caput”). A vida tem prioridade absoluta sobre qualquer outro direito, sendo a dignidade da pessoa humana, inclusive, um compromisso da República Brasileira (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal). A vida digna deve ser assegurada. Nisso se contrapõe a vida dos dependentes que sobrevivem na cracolândia, em clínicas terapêuticas e em hospitais e a vida dos co-dependentes que se deprimem e muitas vezes morrem em conseqüência da ausência de dignidade e esperança na solução da realidade.
Muitos poderiam dizer que maconha não mata. Sim, a maconha sozinha não mata, mas se for conjugada ao uso de álcool ou como etapa de utilização de drogas ainda mais fortes, ela certamente será uma partícipe e tanto, caracterizando a personagem dramática de uma criminosa dissimulada e confessa.
É amplamente sabido que é através do uso inicial da maconha que a maioria dos jovens passa a usar cocaína, crack, ecstasy e outras drogas.
Ah, mas nem todos que usam maconha se viciam e partem para outras drogas, poderiam dizer alguns. Sim, é verdade. Mas quando se viciam e partem para as outras drogas, as portas dos caixões se abrem e apenas esperam os corpos caírem vagarosamente, sem dignidade e sem qualquer escrúpulo, para o silêncio eterno da morte. A maconha funciona como um revólver que somente espera a bala, o projétil certo, para detonar mais uma vida.
A maconha é, digamos assim, o primeiro passo para drogas ainda mais fortes. Lembrem-se que a maconha de hoje é 16 vezes mais potente que a mesma substância usada na época da inocente geração hippie, praticamente uma outra droga, portanto.
Ah, álcool também é uma droga, diria alguém bem informado. Realmente é e também serve de canal para o uso de substâncias mais fortes e degenerativas. Porém, ainda que o álcool cause tantas mortes e tanta dependência, foi “legalizado” pelo Estado, que tanto arrecada tributos com a venda de cervejas, vinhos e pingas, não importando a qualidade e o poder maléfico de cada produto. O que passou a importar ao Estado foi a arrecadação. Porém, como já disse, embora seja considerado legal pelas autoridades governamentais, pode o uso do álcool não ter o amparo do artigo 5º, “caput”, da nossa Constituição Federal. Trata-se de uma discussão polêmica, como essa da descriminalização do uso da maconha.
Alguns ainda poderiam dizer que “pessoas podem viciar-se com o uso da maconha, ir para drogas mais fortes e aí passarem a não ter a vida digna preconizada pela Constituição Federal ou até mesmo chegarem a morrer, algo tão comum, mas muitas a utilizam e não se viciam ou, ainda que se viciem, ficam apenas nela, daí o direito à liberdade desses usuários ser absoluto, já que não há o risco do direito à vida deles ser afrontado”.
Bem, essa premissa aparentemente verdadeira embute preceitos falsos.
A maconha pode não viciar, é certo, e também pode não levar ao uso de substâncias mais fortes e ainda mais degenerativas ou fatais. Mas a maconha, por si só, acarreta a possibilidade de tudo isso acontecer. Pode-se dizer que é o mesmo que brincar de roleta russa com um revólver municiado com um ou dois projéteis. O risco de morte é intenso e presente. E se há o risco de morte, o direito à inviolabilidade à vida não está sendo respeitado. Assim, não haveria como admitir-se a legalização do uso da maconha pelo Estado.
E a maconha não é uma substância inofensiva, não. Produz efeitos colaterais sérios, como a perda de neurônios, a perda da libido e as impotências “coeundi” (de coito) e “generandi” (de procriação). E as poucas características positivas dessa droga não são de forma alguma inéditas ou exclusivas, podendo ser encontradas em medicamentos e em produtos naturais legalizados disponíveis no mercado e que não apresentam efeitos tão maléficos aos membros da nossa sociedade.
Legalizar o uso da maconha é propiciar que mais pessoas se viciem e ainda mais pessoas passem a ter uma vida sem dignidade, perambulando em busca de recursos para o vício, sem discernir entre o viver e o morrer. Além do que, é permitir que uma grande massa de crianças, jovens e idosos, sejam masculinos ou femininos, ceifem a sua própria vida. É grande o número de crianças que usam maconha e que graças a ela passaram a usar drogas ainda mais degenerativas e mortíferas.
Poder-se ia admitir o uso de substância entorpecente apenas como experimento científico, buscando entender a droga e os seus efeitos, mas jamais como experimento em seres humanos.
Admitir o uso da maconha é permitir a violação a princípios constitucionais, mas não só.
Autorizar o uso da maconha é permitir, de fato, a eutanásia de grande parcela da população, incluindo-se aí um grande número de crianças e idosos. É a morte do futuro, do passado e do presente. Sem demagogia, significa o fim dos valores e da nossa própria civilização!
E não se pode esquecer que o Estado não cuida e não trata adequadamente dos seus dependentes, tampouco os recupera, nem tampouco orienta adequadamente os cidadãos sobre os efeitos das substâncias entorpecentes. Vivemos em um Estado verdadeiramente omisso, para não dizer totalmente inerte. E com a descriminalização da maconha, os malefícios não apenas dela, mas das substâncias que com ela se relacionam, serão incrivelmente potencializados.
É por isso que sou contra a descriminalização da maconha. Não se trata de direito de escolha, mas de direito à vida. Nenhum ser humano tem o direito de correr o risco de morte própria ou de seus co-dependentes, tampou o direito de acarretar a si e aos co-dependentes uma vida sem o mínimo de dignidade.
Se o Estado até agora foi omisso na questão das drogas, não pode neste momento propiciar ou alavancar o agravamento da situação. Há vidas humanas, milhões delas, em risco.
Além do mais, permitir que o uso da maconha seja descriminalizado, significa dizer que, face ao fato da polícia deixar de repreender, aumentará o número de usuários e, consequentemente, o número de traficantes e com ele o aumento da utilização de crianças como olheiros, a pior espécie de trabalho infantil, além do agigantamento do lucro desses criminosos. Não parece ser isso o que a sociedade espera.
Não pode existir o direito ao uso da maconha numa sociedade que prioriza o direito à vida com dignidade de cada um dos brasileiros. Maconha não é uma flor que propicia a brincadeira do bem-me-quer, mal-me-quer. Ao contrário, é uma droga, e com ela não se brinca.
Cyro Saadeh é brasileiro, advogado público e jornalista