“O sertão vai virar mar, e o mar virar sertão”. A profecia do beato Antônio Conselheiro, que já virou até tema de música, parece absurda, mas nos últimos anos tem se tornado cada vez mais real, com catástrofes como, por exemplo, as grandes inundações no nordeste brasileiro. A recente decisão da Câmara dos Deputados de alterar o código florestal do país é uma mostra de que, no entanto, a natureza não age sozinha. Movimentos sociais, ambientalistas, parlamentares, cientistas e ex-ministros do meio ambiente consideram que as conseqüências dessas alterações no código florestal podem ser muito danosas para a população brasileira. O texto ainda precisar ser aprovado pelo Senado e sancionado pela presidente Dilma Roussef antes que passe a vigorar. Com isso, movimentos sociais acreditam que ainda é possível reverter o quadro.
No último dia 24 de maio, quando a proposta foi apreciada na Câmara, apenas 63 deputados foram contra as alterações, enquanto 410 as aprovaram. “O resultado revela que a cultura do cuidado ambiental, de tudo isso que o planeta vem nos alertando, com o aquecimento global, os extremos climáticos, os processos de desertificação, ainda não é hegemônica na própria sociedade brasileira. Se houvesse um plebiscito nacional sobre o código florestal, eu tenho a impressão de que a manutenção do atual código venceria”, avalia o deputado federal Chico Alencar (Psol/RJ). Entre os partidos políticos, Psol e PV foram os únicos unânimes na crítica à proposta e na defesa do atual código florestal. Embora o governo tenha criticado alguns pontos da proposta, dos 81 parlamentares do PT que votaram, somente 35 se posicionaram contra as alterações na lei. (Veja a lista dos votantes) “O que me choca bastante é não se perceber que uma das singularidades e força do Brasil no mundo é a nossa biodiversidade, que está rigorosamente ameaçada”, diz Chico Alencar.
Para o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) André Burigo, se o código for aprovado também no Senado e sancionado pela presidente, o país também perde a oportunidade de discutir o modelo de desenvolvimento para o campo brasileiro. “O Brasil é o país que concentra a maior disponibilidade de terras férteis e aráveis e também a maior quantidade de água doce. Esse debate do código florestal não cabe, portanto, a um grupo pequeno, mas a toda a sociedade”, defende. O pesquisador lembra que no mesmo dia em que o código foi votado na Câmara dos Deputados dois militantes que atuavam em defesa do modelo agroecológico para a agricultura brasileira foram assassinados no Pará. “A morte de José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva não foi uma triste coincidência, porque todos os dias são assassinados trabalhadores rurais pobres no campo brasileiro, mas o fato ajuda a engrossar o grito em defesa da floresta e da biodiversidade, no sentido de que o modelo de desenvolvimento para o campo não pode ser discutido de maneira fragmentada. Não há esforços do governo federal de enfrentar o debate do modelo de desenvolvimento no campo”, critica.
Principais mudanças
Entre as principais mudanças aprovadas pela Câmara dos Deputados está a permissão para atividades de agricultura e pecuária em Áreas de Preservação Permanente (APP), como encostas, topos de morro e margem de rios, que já tenham sido ocupadas com essas atividades até julho de 2008. Para o engenheiro florestal Luiz Zarref, da Via Campesina, essas alterações implicam problemas graves, como o avanço ainda maior do desmatamento. Ele comenta que há um equívoco na interpretação do que pode ser considerado como áreas já ocupadas. O texto usa o termo “áreas consolidadas” para se referir aos espaços onde já existem essas atividades. “Essa regra da área consolidada só deveria valer para a agricultura familiar, porque a agricultura familiar tem hábitos históricos e centenários de cultivos nessas áreas. Já o latifúndio normalmente se expande por fronteira agrícola, que foi desmatada nos últimos 20 anos. Então, não dá para considerar áreas consolidadas dos grandes”, critica. Zarref acredita que mesmo sem ainda estar vigorando, foi justamente essa concepção que acarretou um grande aumento do desmatamento anunciado recentemente pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), que detectou a derrubada de 477 km² de floresta no Mato Grosso. “O texto diz que o que foi desmatado até 2008 é que será considerado como área consolidada, mas quem garante que determinada área foi mesmo desmatada até 2008 e não agora em 2011? Por imagem de satélite? Nem todo o país é coberto por imagem de satélite”, questiona.
O novo texto prevê também que as propriedades rurais podem abrir mão da chamada reserva legal, até então obrigatória em todas as propriedades, desde que em qualquer parte do mesmo bioma, o proprietário mantenha outra área de reserva. Isso significa que se uma propriedade no estado de Minas Gerais, por exemplo, não quiser manter a reserva legal, poderá arrendar ou comprar uma área no sul do Maranhão, onde também vigora o bioma Cerrado, e mantê-la como reserva. Segundo Zaref, a não obrigatoriedade de manter reserva legal na mesma microbacia, como prevê o código ainda em vigor, tem um impacto direto na vida das pessoas daquele território. Ele exemplifica: “Se uma pessoa tem mil hectares aqui em Brasília e compra um território para preservar lá no interior do Maranhão, o impacto nos recursos hídricos, na temperatura, na poluição, no solo, que esse latifúndio faz aqui em Brasília, não terá nenhuma compensação”.
O engenheiro florestal afirma ainda que, além das questões ambientais, uma das consequências dessas mudanças é a expulsão de trabalhadores rurais do campo. “As terras dos agricultores familiares são, em sua imensa maioria, as terras mais baratas. E o latifundiário não vai pagar uma fortuna em um hectare de uma terra plana, ele vai comprar justamente as terras das comunidades quilombolas, tradicionais, que têm baixo valor de mercado. Em uma mesma região, há terras planas, normalmente onde estão os latifúndios, que custam R$ 20 mil o hectare e terras dos agricultores familiares que custam R$ 2 mil, R$ 3 mil, e que geralmente já estão mais ou menos preservadas. Então, haverá um aliciamento muito grande dos latifúndios em tornos dos agricultores familiares”, alerta. Outras alterações são a permissão de plantação de 50% de espécies exóticas – não-nativas – para a recomposição da reserva legal e a definição de que propriedades com tamanhos de até quatro módulos fiscais possam manter como reserva apenas as áreas que ainda permanecem preservadas, sem a necessidade de recomposição. “Isso tem um grande impacto: significa reverter todo o processo da legislação ambiental em curso. Com essas mudanças, o objetivo passa a ser proteger os desmatadores e não a biodiversidade”, observa. Zarref explica que ao permitir que as propriedades com até quatro módulos fiscais mantenham como reserva legal apenas as áreas ainda não desmatadas até 2008 e não obrigar o reflorestamento, a nova lei não impede que as grandes propriedades usem artifícios como o registro em várias matrículas de quatro módulos para não terem que manter a reserva.
O deputado Chico Alencar destaca que outro aspecto grave no novo texto é a atribuição dada aos estados de emitir licenças ambientais. “O poder local é muito mais vulnerável às pressões. Os latifundiários, os grandes produtores, o agronegócio tem muita força política e financia muitas campanhas”, diz.
O texto em discussão no congresso prevê ainda que as multas decorrentes do desmatamento ilegal aplicadas até julho de 2008 sejam anistiadas. A data se refere ao período no qual foi publicado o segundo decreto (6.514/08 ) que regulamentou as infrações contra o meio ambiente com base na lei 9.605/98. De acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), até essa data há cerca de 13 mil multas, com valor total de R$ 2,4 bilhões ainda não pagos. “Muitos parlamentares que votaram o código são diretamente interessados nisso. Eles se livraram de muitas multas”, afirma Chico Alencar.
Saúde humana e ambiental
Se a nova proposta do código prejudica a população do campo, sobretudo os pequenos agricultores, quais são os impactos das mudanças na saúde e qualidade de vida da população brasileira de um modo geral, inclusive das cidades? Um recurso natural que pode ser muito prejudicado com as mudanças é a água. “O impacto mais grave é nos recursos hídricos. Vamos ter muito provavelmente uma crise de recursos hídricos. O que está sendo feito nas áreas de preservação permanente e reservas legais tem impacto em toda a bacia hidrográfica do Brasil. Os principais rios são alimentados por rios pequenos e que são muito vulneráveis a essas modificações, já que muitos nascem nas reservas e passam pelas propriedades que deixaram de manter as matas ciliares“, explica Zarref. “Haverá um impacto também no regime de chuvas. Além da própria poluição que poderá aumentar porque diminuirá o número de florestas”, completa. André Burigo acrescenta que outro problema é a contaminação dos rios por agrotóxicos. “Sem a mata ciliar, os produtos químicos utilizados na agricultura e na pastagem também ficam nos cursos d’agua, que migram em direção às cidades, já que as cidades no Brasil ficam muito próximas dos rios”, afirma. O pesquisador concorda que os cursos d’água podem diminuir, já que sem mata ciliar o volume dos rios diminui.
De acordo com Zarref, além de todas essas consequências para a saúde humana e ambiental, um grave problema que pode ocorrer a curto prazo é o aumento das inundações. “Com a reserva legal, é possível segurar a chuva. Sem reserva, fica mais difícil. A catástrofe no Rio de Janeiro no início deste ano mostra isso. Aparentemente é uma região com floresta, mas na realidade aquela foi uma região de cafeicultura. Há cerca de 40 anos não se planta mais café na região, mas as árvores que estão lá são frágeis, porque compõem o que chamamos de regeneração. Então, para aquele volume de chuvas, essa floresta não consegue segurar. Uma floresta nativa provavelmente conseguiria”, explica.
Além disso, André alerta que outros agravos à saúde humana podem acontecer. “Existem surpresas que a floresta pode reservar ao homem quando ele desmata. Por exemplo, doenças podem se urbanizar nesse processo. O homem pode se tornar o principal reservatório para aquela doença que antes tinha os animais silvestres como os principais reservatórios. Então, há uma série de incertezas à medida que o homem desequilibra os ecossistemas e impacta a biodiversidade”, aponta.
Para o professor, o código é um sinal verde para o desmatamento e, com isso, outro grande prejuízo é a perda da riqueza da biodiversidade brasileira. “Pode haver uma grande perda em relação à riqueza de produtos ainda não conhecidos da floresta, uma riqueza que pode contribuir no processo de cura para uma série de doenças. E que vai se perdendo à medida que a destruição avança sem essas reflexões”.
Mobilização
Para o deputado Chico Alencar, se a proposta do novo código florestal de fato for aprovada, toda a população brasileira sairá perdendo. “Quem perde é a população, a biodiversidade brasileira e o planeta. Perde também o preceito constitucional que diz que toda propriedade tem um dever social, isto é, o direito de propriedade não é ilimitado”. Para ele, ainda há muita força política dos segmentos que defendem o latifúndio. “É curioso que boa parte dos que votaram pela decepação do código são contra a Emenda Constitucional (PEC 438/2001), que confisca terras em caso de trabalho escravo”, observa. O parlamentar reforça que uma decisão importante como essa deveria ser tomada com base em instrumentos de consulta popular como o plebiscito e o referendo.
De acordo com Zarref, a Via Campesina apoia a proposta de usar esses instrumentos de consulta popular. “Toda a população brasileira tem que opinar. A grande transformação do código florestal de 1965 é a definição das florestas como bens de interesse comum da sociedade brasileira, acima de qualquer interesse privado. O próprio código de 1934 já trazia isso. Então, nada mais justo do que a população decidir sobre esse bem que é dela”, opina. Segundo ele, a Via Campesina continuará mobilizada para barrar as alterações do código florestal.
O pesquisador André Burigo lembra que no próximo ano o Brasil sediará a conferência Rio +20, uma iniciativa que visa discutir os rumos da preservação ambiental 20 anos depois da Eco 92. “É essa a resposta que o governo e os representantes do legislativo estão dando de como o Brasil pensa o seu projeto de desenvolvimento para os próximos anos e de como vai enfrentar a questão das mudanças climáticas, do aquecimento global? É essa a concepção de desenvolvimento sustentável?”, pergunta. “Esse é um questionamento que tem que ser feito agora e essa conta tem que ser cobrada na Rio + 20″, ressalta.
(*) Reportagem publicada originalmente na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (ESPJV-Fiocruz).