Vejam o que diz um dos maiores constitucionalistas da atualidade a respeito do ataque israelense ao comboio humanitário.
OPERA MUNDI - Última Instância
A questão do conflito Palestino-israelense não é de fácil compreensão e de muito difícil deslinde. Ambos os povos ocupam o mesmo território e ambos dizem lastrear sua legitimidade em razões ancestrais que se confundem com as respectivas crenças religiosas.
Estive pessoalmente por lá no começo do ano e visitei toda a área. O conflito e a beligerância são evidentes. A história de ambos os povos muito rica, inclusive com origem comum. Árabes e judeus, ao contrário do que se pode pensar, historicamente, tiveram boas relações até a fundação do Estado de Israel, afinal, são povos irmãos. Ambos semitas.
As razões e fatos relatados por cada parte em conflito são tão díspares e radicalizados que é difícil tomar partido “a priori”.
Inobstante tal assertiva, é inaceitável o ataque israelense a comboio humanitário internacional que procurava levar mantimentos e remédios ao povo palestino sob bloqueio.
Por mais que se argumente com a tese jurídica da soberania do Estado Israelense, esta soberania não lhe dá o condão de aviltar valores fundamentais e normas principiológicas dos organismos internacionais dos quais Israel participa e, volta e meia, pede socorro e auxílio.
Redijo este texto no primeiro dia de notícias sobre o ataque que Israel argumenta ter sido feito em águas de seu território. Os integrantes do comboio, cidadãos de várias nacionalidades, desmentem a versão israelense. Segundo estes, o ataque se deu em águas internacionais.
Mesmo que a ação tenha ocorrido como afirma as autoridades de Israel, este não se justifica. Não havia no comboio qualquer intenção de ataque ao povo israelense ou a suas Forças Armadas. O comboio tinha apenas função humanitária, levar alimentos e remédios a uma população sob bloqueio. Visava apenas garantir a essa população os direitos humanos mais elementares que constam das normas da ONU sobre o tema, quais sejam, o direito à sobrevivência, com alimentação mínima e remédios.
Mesmo sob estado de guerra, há crime lesa-humanidade quando se usa de Força Armada e ataques físicos com o fito de manter a população civil sem condições mínimas de sobrevivência. Matar civis de fome é inaceitável, mesmo em guerra! Atenta-se contra valores mínimos de direito à vida e à dignidade humanas.
Do mesmo modo que a soberania do Estado alemão não pode ser aceita como argumento para os campos de concentração e extermínio de judeus, comunistas, homossexuais, ciganos etc., também a soberania não pode ser aceita como argumento em favor de ataque bélico a comboio multinacional de ajuda humanitária à população civil palestina.
Essa situação, aliás, faz lembrar o cerco criminoso de Hitler a Stalingrado, mantido a custa de recursos bélicos contra meios de abastecimento. Cerco que deixou sem alimentação e remédios milhares de civis, que acabaram morrendo de forma por demasiado sofrida e desumana.
A ONU anuncia que irá investigar o ocorrido, por meio de seu Conselho de Segurança, que no momento em que escrevo se reúne em caráter de urgência. Esperamos que tal investigação seja célere e apure e sancione com rigor o corrido, a nosso ver, inegável ato de crime lesa-humanidade praticado por Israel, com dez vítimas que morreram de imediato e talvez alguns milhares que morrerão em breve, sem alimento e remédios que lhes possibilitem sobreviver.
Pedro Estevam Serrano é advogado, mestre e doutor em direito do Estado pela PUC-SP, professor de direito constitucional, fundamentos de direito público e prática forense de direito do Estado da Faculdade de Direito da PUC-SP. É Autor das obras "O Desvio de Poder na Função Legislativa" (editora FTD) e "Região Metropolitana e seu regime constitucional" (editora Verbatim).