Mauricio Dias
Militares criam comissão para elaborar novos códigos e, outra vez, atropelam o Congresso
Embora seja civil, egresso do Parlamento e com passagem pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro da Defesa, Nelson Jobim, desde que assumiu essa função, passou a fazer visitas oficiais aos quartéis e dependências das Forças Armadas trajando uniforme militar com a patente de general de quatro estrelas. Esse é o posto máximo da carreira. Nos quartéis, Jobim é chamado de “general genérico”.
De tanto brincar de general, acostumou-se à fantasia.
Em duas ocasiões cruciais, recentes, alinhou-se aos militares: ameaçou demitir-se com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, se não fossem alterados os termos de criação da Comissão da Verdade, para apurar crimes da ditadura. O governo recuou. Depois trabalhou para manter os termos da Lei da Anistia, no que se refere à proteção dos agentes públicos que torturaram. O governo concordou.
Foram duas vitórias do poder militar sobre o civil. Essa é a democracia que ainda temos. Mas Jobim, essa figura híbrida da administração Lula, terá de mostrar de que lado está e se, de fato, ainda acredita na soberania do poder civil.
Foi criada no Superior Tribunal Militar (STM) uma comissão com representantes de diversas instituições para elaborar novos Códigos Penal Militar e de Processo Penal Militar. O resultado deverá ser enviado ao presidente da República para sanção.
Esse grave pecado original só será purgado se a proposta for submetida ao Congresso quando chegar à Presidência. Os militares sempre assumiram esse papel e, invariavelmente, legislaram ao feitio arbitrário, criando certas normas em permanente rota de colisão com os princípios democráticos.
No livro O Uso Político das Forças Armadas, o promotor militar federal João Rodrigues Arruda mostra a profundidade do abismo entre a caserna e a sociedade civil.
“De 1763, quando foram adotados os Artigos de Guerra do Conde de Lippe, até os dias de hoje, jamais o Congresso Nacional aprovou um Código Penal Militar ou Processual Penal Militar”, registra Arruda no precioso e corajoso trabalho.
Tentativa anterior de mudar a legislação militar, durante o governo FHC, foi abortada inesperadamente. O então ministro da Justiça, José Carlos Dias, formou uma comissão para elaborar um anteprojeto. Na véspera da instalação, a comissão foi dissolvida por pressão do STM. Dias resmungou: “Certas suscetibilidades foram feridas”.
O promotor João Arruda lembra que qualquer discussão sobre crimes militares deve ser precedida de outra que responda a essa questão: deve ou não haver Justiça Militar? Quais os crimes e quais criminosos devem ser julgados por tribunais militares?
De acordo com um estudo divulgado pela ONU, em 2005, o próprio STM deveria ser extinto. Para a ONU o julgamento dos recursos das sentenças do primeiro grau da Justiça Militar deveria ser feito por tribunal ordinário, composto somente por civis.
O documento estabelece “normas mínimas” de alcance universal. Uma delas firma a incompetência de organismos militares julgarem civis para crimes de qualquer natureza.
Outro ponto fundamental é a garantia do habeas corpus. No Brasil os punidos por transgressões militares não têm direito ao HC. É, por incrível que pareça, o que estabelece a própria Constituição.
Não se sabe ainda se a proposta seguirá para aprovação do Congresso. Caso não ocorra, deve ser resgatada a reação indignada de Rui Barbosa registrada no livro de Arruda. Em 1890, quando o Poder Executivo contornou o Congresso e criou o Código Penal da Armada, Rui sentenciou: “É uma lei nula. Logo, não pode ser lei”.