Enquanto alguns dos países mais armados do planeta apontam o dedo para o Irã, campanha da sociedade civil sugere abolir de fato os artefatos atômicos — e deixar de dividir o mundo entre as nações que têm as bombas e as outras. Discurso de Lula apoia proposta
Assim que terminou em Washington a Cúpula de Segurança Nuclear (Nuclear Security Summit), convocada pelo governo dos Estados Unidos, a mídia internacional chamou atenção para... Teerã. Iniciativa de Barack Obama, a cúpula tem importância real. Seu objetivo é evitar que a ameaça da explosão de armas atômicas se multiplique, num mundo em que o uso da energia nuclear crescerá e em que a há, de fato, grupos terroristas dispostos a praticar qualquer tipo violência, em nome (ou a pretexto...) de suas causas. Mas, muito antes de produzirem efeitos, os compromissos assumidos por 46 países estão sendo empregados para ampliar as pressões dos EUA e Israel contra o desenvolvimento de tecnologia nuclear pelo Irã – que não possui, até o momento, nenhuma arma atômica.
Esta distorção pode ser explicada, em boa medida, pela existência, desde 1968, do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Apesar de seu nome cativante, ele é intrinsecamente injusto – e por isso tem se mostrado cada vez menos eficaz. Divide o planeta em duas classes de países: de um lado, os que podem se armar com os dispositivos de destruição da vida mais poderosos já criados pelo ser humano; de outro, todos os demais.
Entre 3 e 28 de maio, uma conferência da ONU, em Nova York, debaterá a revisão do TNP. Um conjunto de organizações da sociedade civil está aproveitando esta oportunidade para defender uma proposta pacifista fundamental. A ideia é substituir o tratado hoje existente por um Convênio sobre Armas Nucleares que proíba a produção de armas atômicas por qualquer país; e que estabeleça um cronograma claro para desmantelar os estoques hoje existentes. Ao discursar em Washington, em 13/4, o presidente brasileiro defendeu explicitamente algo idêntico: "a completa e irreversível eliminação de todos os arsenais".
A necessidade de um compromisso internacional que supere o TNP pode ser compreendida num conjunto de textos disponíveis na Biblioteca Diplô. O primeiro deles é Sessenta anos de armas nucleares, escrito em novembro de 2005, por Georges Le Guelte. Ele narra, em suas diversas fases, o esforço travado pelos países que detêm armas atômicas para evitar que outras nações o façam – e revela como este jogo representa um risco crescente para a humanidade.
Primeiros a desenvolver a energia atômica e as armas nucleares, os Estados Unidos proibiram, mostra Le Guelte, a divulgação de qualquer informação relativa às novas tecnologias, entre 1942 e 1954. Nesse ano, a União Soviética explodiu sua primeira bomba, somando-se imediatamente aos norte-americanos na busca da exclusividade. A tentativa voltou a fracassar. Doze anos depois, quando foi assinado o TNP, mais três nações dominavam o ciclo completo de produção de armas atômicas: Reino Unido, França e China.
Mas os sucessivos fracassos não os impediram de insistir no mesmo erro. O TNP divide explicitamente o mundo entre os “Estados dotados de armas” – que haviam conseguido explodir algum engenho até 1º de janeiro de 1967 – e os que “deveriam se comprometer a não tentar obtê-las, e a colocar todas as suas instalações nucleares sob o controle da Agência Internacional para Energia Atômica (AIEA)”.
A desigualdade era tão flagrante que, num primeiro momento, a grande maioria das nações recusou-se a aderir ao TNP. Algumas, como Alemanha, Japão e Itália, denunciaram abertamente seu caráter de submissão. O acordo só adquiriria algum peso internacional em meados dos anos 1970: o avanço dos movimentos pacifistas (e a inexistência de uma alternativa) acabou sendo utilizado pelos defensores do TNP para apresentá-lo como o “acordo possível”. O número de aderentes cresceu então sem cessar, até chegar aos 187 países hoje firmantes.
Por trás desta aparente unanimidade, porém, o armamento prosseguiu. O chamado “clube atômico” foi engrossado, declaradamente, por Índia, Paquistão e Coreia do Norte. Israel assumiu a condição única de um Estado com armas nucleares não-declaradas. Este número tende a aumentar rapidamente, argumenta o mesmo autor em No embalo da globalização sem lei. Novas tecnologias (como o enriquecimento de urânio por meio de centrífugas) tornaram o processo de produção mais acessível e dissimulável. Pelo menos Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça, Japão e Coreia do Norte acumularam quantidades de plutônio e urânio enriquecido capazes de produzir armas rapidamente. O mesmo poderia ocorrer com Irã, Arábia Saudita, Egito, Síria e Turquia – sem falar de Brasil e Argentina, que também adquiram conhecimentos técnicos importantes. Ainda mais grave é o fato de os Estados Unidos terem adotado, em janeiro de 2002, uma Revisão da Postura Nuclear (Nuclear Posture Review) que permite a seu presidente utilizar as armas atômicas como outras quaisquer, a depender apenas de considerações sobre a missão militar a ser alcançada.
Dois outros textos da Biblioteca chamam atenção, em particular, para a hipocrisia adotada por Washington em relação ao Irã. Em janeiro de 2005, Walid Charara sugeriu, em Quando os Estados Unidos provocam um confronto, que a oposição norte-americana ao suposto interesse de Teerã em armas nucleares pode ser apenas um pretexto. O que os EUA desejariam, na verdade, é a derrubada do regime de República Islâmica. Já em O direito à tecnologia, Cyrus Safdari associa o contencioso entre os dois países à tentativa dos EUA de privar o adversário do uso pacífico da energia nuclear. Ele lembra: ao contrário do que geralmente se supõe, as reservas petrolíferas do Irã estão em declínio e a necessidade de diversificar as fontes de energia é real.
Se o TNP é tão injusto, que significa exatamente a alternativa de um Convênio sobre Armas Nucleares, que proíba sua pesquisa, teste e armazenamento por qualquer país? Para responder a esta pergunta, a Biblioteca sugere, em primeiro lugar Desarme Nuclear: há llegado la hora. Produzido por Dimity Hawkins, e publicado pela Agência IPS, o artigo relata que, além de apoiada por uma coalizão de organizações da sociedade civil, a hipótese de um novo acordo foi aprovada, em mais de uma ocasião, por mais dois terços das nações presentes à Assembleia Geral da ONU. (Antonio Martins)