Texto: Lamia Oualalou
Islã ganha adeptos no Brasil como religião que une povos perseguidos
População muçulmana no país deve passar de 1 milhão, sendo que boa parte não é de origem árabe. Atentados em Nova York e novela da Globo despertaram a curiosidade das pessoas
"Allah Akbar" (“Deus é o maior”!): a voz do imame, transmitida pelos alto-falantes, chama centenas de muçulmanos para a oração do Eid Al-Adhha (“festa do sacrifício”), uma das datas principais do calendário islâmico. Na rua, os açougues anunciam, em cartazes, a venda exclusiva de carne halal, que em árabe significa permitida – desde que o animal tenha sido abatido segundo os preceitos da religião islâmica. Parece Damasco, Cairo, Rabat. Mas é o Brás, bairro de classe média no coração de São Paulo.
O Brasil está experimentando um crescimento da população muçulmana, com a maioria das estimativas confiáveis indicando que o número passou de centenas de milhares para mais de 1 milhão somente nesta década. Num universo de 192 milhões de brasileiros, é ainda uma minoria, mas mesquitas estão sendo construídas pelo país.
As maiores comunidades estão no em São Paulo e no Paraná, mas existem grupos significativos em cidades do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul.
"A primeira mesquita brasileira foi construida entre 1946 e 1960. Foi a Mesquita Brasil, em São Paulo”, lembra o professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, da UFF (Universidade Federal Fluminense), especialista em Islã. O movimento de construção de mesquitas começou nos anos 1980 e teve uma forte aceleração desde então. Atualmente, a Sociedade Beneficente Muçulmana calcula que existam mais de 100 mesquitas e salas de oração no país. O bairro do Brás é representativo desta tendência, com duas enormes mesquitas, separadas apenas por uma rua: uma xiita, pintada de azul, e outra sunita, num prédio clássico.
“O islamismo chegou aqui com os primeiros imigrantes árabes”, conta o jovem Sheikh Mohamad Al Bukai, que administra a mesquita sunita do Brás desde que chegou da Síria, há cinco anos. Ele se refere aos imigrantes sírios, libaneses e palestinos, na maioria sunitas, que se instalaram no Brasil a partir de 1860. No entanto, segundo o xeque, os ataques de 11 de setembro de 2001 provocaram um grande movimento de conversão dentro da população brasileira sem origem árabe.
“Os atentados despertaram uma grande curiosidade em relação ao Islã. As pessoas queriam saber quem era esse povo capaz de desestabilizar o império norte-americano, e se era verdade tudo o que a mídia dizia sobre os muçulmanos. Chegando aqui, eles descobrem que não é uma religião que prega o ódio, mas ao contrário. E, após leituras e palestras, alguns decidem se converter”, continua. Hoje, o Sheikh Mohamad calcula que 15% da comunidade muçulmana do Brás não é de origem árabe.
É o caso da paulistana Tâmara Fonseca, 24 anos, nascida numa família católica, mas que estava na porta da mesquita com os cabelos totalmente cobertos com um véu quando a reportagem chegou. “Um dia, um amigo me deu um Alcorão. Fiquei curiosa e comecei a ler. De repente, todas as coisas da vida pareciam muito mais claras”, conta.
A conversão não demorou. Há quatro anos, Tâmara repete diariamente a shahada, a profissão de fé do muçulmano: “Não há outra divindade além de Deus e Maomé é o seu profeta”. Ela assegura que a nova religião não atrapalha seu trabalho: designer de roupas evangélicas. “Eu encontro os clientes com meu hijab. Eles não se importam, já que gostam do meu trabalho”, diz a jovem.
“A maioria dos muçulmanos no Brasil é formada por imigrantes árabes e seus descendentes. Existe, porém, um crescente número de brasileiros não-arabes que se convertem ao Islã por meio de relações pessoais, introduzidas por relações de trabalho, amizade ou casamento”, confirma Paulo Hilu. A tendência é ainda mais forte nas cidades com poucas tradições muçulmanas, como Rio de Janeiro: hoje, 85% dos mais de 5 mil muçulmanos da capital fluminense são convertidos.
Este tipo de conversão, dito por “exemplaridade”, sempre existiu no Brasil. “Os atentados contra o World Trade Center aumentaram a visibilidade dos muçulmanos e as perguntas, que incentivaram novas conversões”, acrescenta o professor.
O Clone
O fenômeno foi presenciado no mundo inteiro. No entanto, no Brasil, a curiosidade ficou ainda mais atiçada por causa da telenovela O Clone, da Rede Globo. “Foi uma coincidência maluca. A novela, que estava prevista pelo canal Globo havia meses, foi ao ar em outubro de 2001, apenas três semanas após os atentados”, lembra a pesquisadora Francirosy Ferreira, especialista em Islã na Unicamp (Universidade de Campinas) e na USP (Universidade de São Paulo).
Acostumada a visitar as mesquitas para suas pesquisas, ela viu novas caras surgirem de repente – na maioria, mulheres. “Muitas tinham interesse no matrimônio árabe, e pensavam em optar pelo islamismo para terem o direito de casar com um muçulmano igual àquele da novela, que respeitava as mulheres e dava ouro de presente. Todas as mulheres queriam namorar um Said”, explica a professora, em referência ao marroquino romântico da trama de Glória Perez.
Ferreira conta que surgiram muitos sites na internet para ajudar a construção desses amores “globalizados”: brasileiras com egípcios, sírios e outros. Ela ressalta, porém, que muitas destas conversões “por moda” não duram, já que a pressão social é muito grande para que a pessoa desista. “As famílias raramente aceitam a escolha do Islã, que continuam a perceber como uma religião estranha e que não tem nada a ver com o Brasil, rejeitando os parentes convertidos. Alguns não aguentam e preferem voltar atrás”, relata.
Globalidade islâmica
É justamente a característica de “fora do Brasil” que atrai muitas almas à procura de uma religião. “Em geral, uma pessoa que se converte ao islamismo já tentou outras opções, como o candomblé e alguma das igrejas evangélicas, sem ficar satisfeito”, ressalta Hilu. Eles percebem o Islã como uma religião que abre as portas do mundo inteiro: muçulmanos são presentes no mundo árabe, mas também na Europa, nos Estados Unidos, na Ásia e na África. A internet facilita os contatos, e há uma solidariedade entre povos que se acham perseguidos, já que, geralmente, são apresentados de maneira negativa nos noticiários.
A resistência do Hizbollah à ocupação israelense do Líbano, assim como as imagens de sofrimento dos palestinos e dos iraquianos bombardeados, tiveram um papel importante nessa percepção, segundo o antropólogo carioca. Mas ele nega que haja identificação.
“Estes brasileiros não se apaixonam pela causa palestina. Mas ficam interessados e acham que o Islã tem uma mensagem de solidariedade, igualdade e justiça social. Para eles, o islamismo reúne as características de uma religião e uma ideologia política dentro de uma perspectiva terceiro-mundista que também pode ser encontrada entre os adeptos da Teologia da Libertação no catolicismo latino-americano”, analisa.
Estudos e dízimo
A procura do conhecimento é outro elemento importante das conversões. “O Islã é uma religião que incentiva os estudos, a vontade de aprender”, diz o Sheikh Mohammad. Ele lembra que boa parte dos alunos que assistem às palestras e às aulas de sua mesquita é formada por universitários.
Francirosy Ferreira também avalia que as motivações da conversão ao Islã são diferentes do movimento que incentiva cada vez mais brasileiros a abandonar o catolicismo pelas denominações evangélicas. Segundo ela, “o católico que opta por uma igreja evangélica não tem esta questão política, muito forte no Islã”. A pesquisadora ressalta também a diferencia em relação ao dinheiro: "o sucesso material não é importante para os muçulmanos, e a mesquita nunca pede um dízimo, como certos pastores". Existe a zakat, a doação aos pobres, que é um dos pilares da religião, mas é totalmente voluntário.
Qualquer que seja a motivação, a grande maioria dos novos muçulmanos brasileiros escolheu o Islã wahabita, cuja apreensão, segundo os especialistas, é a mais fácil. “Eles têm uma dimensão pedagógica muito boa, com regras claras. Não é preciso ser árabe para ser um bom muçulmano, ao contrário de outra variantes do Islã mais codificadas do ponto de vista cultural”, analisa Hilu.