Em janeiro, depois de mais de 15 anos, entrei novamente em uma casa que marcou o meu final de adolescência. Foi uma experiência mais que gratificante e tocante.
Um amigo verdadeiro, de longa data, havia morrido há menos de 4 meses e fui fazer uma visita à sua ex-mulher e filha. Embora fossemos muito amigos, ele era ciumentíssimo e nunca permitiu que conhecesse a sua filha. Coisas do Renato. Coisas desse meu amigo. Coisas de uma pessoa diferente, única, às vezes divertida, às vezes maníaca, como cada um de nós.
Fiquei impressionado só de passar pela portaria e rumar aos elevadores. Era uma sensação diferente. Ao mesmo tempo que tudo estava fresco em minha memória, também estava distante, como se tratasse de uma vida passada, não para o meu amigo, mas para mim mesmo.
A filhinha dele, tão divertida quanto o próprio pai foi em boa parte de sua história, desceu para me acompanhar. Uma menina encantadora.
Fomos conversando, meio tímidos, e ao abrir a porta do elevador e ver o hall e a porta de entrada do apartamento, já me vieram à memória o pai, o avô e a avó do Renato, todos já falecidos. Enxergava flashes de coisas que ocorreram, de vozes que soaram e de cheiros que perfumavam uma época distante. Era a minha memória brincando com o presente. Mas o susto que tomei foi ver que uma lâmpada não parava de piscar. Pensava comigo mesmo, o Renato está presente. Que nada. Não era imaginação, mas a lâmpada estava com problema e foi só mexer em outras que ela logo parou de piscar. Ah, como a nossa imaginação e memória nos levam a terrenos do incrível, do fantástico, à possibilidade de brincar com o hoje e com o próprio passado, algo que a linearidade do pensamento imposto não nos permite.
Era como se os avós e pai do Renato me acompanhassem nessa viagem. Era como se eles estivessem presentes com uma única fala e um único movimento. Era algo que não entendia direito. Não via imagens definidadas, mas imagens meio apagadas, quase em preto e branco e estáticas.
Tive um jantar magnífico, caprichado, delicado, momentos ímpares, e como se fossemos sádicos, não parávamos de falar no Renato amigo, ex-marido e pai. Eta sujeito querido. Eta lembranças vívidas. Eta vida sofrida, também a de todos nós, mas principalmente a dele.
Contamos muitas histórias, reais e fábulas, e nos encantávamos com a memória que o Renato permitiu que tivessemos dele e também com a nossa imaginação, que ia longe.
Terminamos a noite vendo um vídeo em que a menininha demonstrava ir muito além do pai. Ela canta e dança muito bem, já o pai... Ela adorava contar histórias e rir, igualzinho ao pai.... Ela me adotou como amigo, igualzinho ao pai. E fui para casa com uma enorme sensação de prazer, como se o passado, que tantos momentos bons me propiciou, estivesse de novo no meu dia-a-dia, batendo à minha porta e no meu coração. Não houve substituição de amigo, mas uma nova forma de amizade, com um pouco do que há dele no presente, sua filha, não exatamente idêntica à sua imagem, mas semelhante. Sentia o abraço fraternal do meu amigo a todo instante, através da sua filha, e o meu coração se acalmou e relaxou. O passado não havia morrido e era possível enxergar o presente de forma poética. Afinal, os verdadeiros e intensos amigos, queiram ou não, compõem os momentos em comum com poesia.