para o ICArabe
Chador, hijab, niqab, burca, jilbab . São vários os modelos de vestimentas que encobrem as formas do corpo feminino, os cabelos e até mesmo o rosto das muçulmanas. E também são inúmeras as restrições que as usuárias têm enfrentado. Na França, usar algo do gênero em escolas públicas e até na rua vem sendo alvo da sanha governamental. Na Turquia, o mesmo princípio, o da laicidade do estado, foi mencionado para proibir o uso de véus nas universidades. Nos Estados Unidos, muçulmanas devotas têm problemas até para entrar em bancos. Talvez seja hora de entendermos um pouco mais as motivações das usuárias.
A época e o local de origem do costume de cobrir os cabelos e o corpo são incertos. Cobrir o rosto com um véu era comum na Baixa Idade Média entre as bizantinas orientais (FREI BETTO, 2000; p. 221), mas também era uma prática comum na Península Arábica pré-islâmica (AHMED, 1992; p. 5). Sabe-se com certeza, contudo, que o costume se popularizou entre os muçulmanos muitas décadas depois da morte do profeta Muhammad (?-632), durante o califado abássida, em meados do século VIII (KAMEL, 2007; p. 152).
A própria regulamentação da vestimenta entre os muçulmanos é controversa. O Alcorão, livro sagrado que é reconhecido por todas as correntes islâmicas , não é preciso sobre o assunto. Nele, não há nenhuma indicação em relação à prática feminina de cobrir a cabeça, apenas a recomendação de que os fiéis se vistam com modéstia. “Specific attire for women is not stipulated anywhere in the Quran, which also emphasizes modesty for men...” (ESPOSITO, 2002, p. 95). O uso de vestimentas especiais entre as muçulmanas baseia-se, de acordo com Frei Betto e Esposito, no versículo 31 da sura 24 do Alcorão (sem data, p. 186):
E dizer às crentes que baixem o olhar e preservem o pudor e não exibam de seus adornos além do que aparece necessariamente. E que abaixem seu véu sobre os seios e não exibam seus adornos senão aos seus maridos ou pais ou sogros ou filhos ou enteados ou irmãos ou sobrinhos ou damas de companhia ou servas ou criados de apelo sexual ou às crianças que nada sabem da nudez da mulher.
A tradição islâmica afirma que tudo, exceto mãos e pés – além de muitos incluírem rosto – deve ser coberto. A interpretação parece uma contradição, pois se o corpo inteiro precisa ser coberto, não haveria sentido a especificação no livro sagrado sobre cobrir os seios separadamente. Outro verso do Alcorão que aborda o tema designa que as mulheres devem usar um manto para não serem reconhecidas e incomodadas. Ambos são as únicas indicações de vestimenta para mulheres no Alcorão (KEDDIE, 2007; p. 206).
Provavelmente, a prescrição tradicional está ligada ao preceito da segregação sócio-religiosa, fundada sobre a diferença de gênero. Ela se relaciona com uma distinção entre o domínio público e a esfera privada, que tem origem nos mecanismos sociais de organização dos papéis de ambos os sexos criados e consolidados na sociedade patriarcal pré-islâmica e que “resistiram com o passar do tempo, até os nossos dias, quando as conflitividades entre as diversas identidades de gênero explodiram e ganharam visibilidade na sociedade” (PACE, 2005; pp. 151-2).
A socióloga marroquina Fátima Mernissi tem uma tese bastante controversa a respeito do uso religioso da segregação dos sexos. Ela afirma que, ao contrário da cultura ocidental, que se baseia na crença de que as mulheres são inferiores biologicamente, no Islã é o contrário. Na verdade, o sistema de crença é baseado na suposição de que as mulheres são seres poderosos e perigosos e por isso existem instrumentos para sua contenção. “All sexual institutions (poligamy, repudiation, sexual segregation, etc.) can be perceived as a strategy for containing their power” (MERNISSI, 1987; p. 19). Portanto, o ato de cobrir a cabeça das mulheres seria uma forma de proteger os homens, e não o contrário.
Nos últimos anos, essas marcas de segregação e recato islâmico têm sido vistas cada vez mais freqüentemente em reportagens jornalísticas que tratam dos países islâmicos e daqueles onde há grandes comunidades de fiéis da religião. Esse aumento da cobertura sobre o assunto se deve, provavelmente, a duas razões primordiais. A primeira é um interesse despertado pelos atentados de 11 de setembro de 2001 em relação ao mundo islâmico, com grande ênfase na situação das muçulmanas em geral. E, em segundo, pela disseminação da vestimenta islâmica entre as muçulmanas de todo o planeta, principalmente nos centros urbanos do mundo.
Clifford Geertz (2001) já apontava, em uma conferência realizada em 1996, que a adesão a essas vestimentas se tornava uma tendência crescente que faria parte de uma “reconfiguração religiosa da política do poder”. Esse movimento, pós-queda do Muro de Berlim, teria trazido à tona formas mais particulares e particularistas de auto-representação coletiva (GEERTZ, 2001; p. 157). O antropólogo norte-americano cita especificamente o caso de jovens javanesas, urbanizadas e instruídas, que optaram por adotar uma vestimenta tradicional comum no Oriente Médio (e nem tanto no Sudeste Asiático onde vivem), o jilbab, antes associada a mulheres mais velhas e devotas. Baseado nas pesquisas de Suzanne Brenner com vinte mulheres entrevistadas na Indonésia, Geertz explica que este não é um movimento simples e único (op. cit.; p.164):
O movimento das identidades religiosas e das questões religiosas em direção do centro da vida social, política e até econômica talvez esteja disseminado e crescendo, tanto em escala quanto em importância. Mas não é um fenômeno unitário, a ser uniformemente descrito. Existem tantas variedades de “experiência religiosa”, ou, se quisermos, expressões da experiência religiosa, quantas sempre existiram. Ou talvez mais.
A própria pesquisadora aponta que esse movimento demonstra a ocorrência de transformações sociais e religiosas mais profundas. Segundo Brenner, para algumas muçulmanas javanesas, a adoção do uso do jilbab é tanto uma reconstrução do “self” como também a reconstrução da sociedade através da autodisciplina coletiva e individual. A própria opção por usar a vestimenta se traveste de uma característica moderna. A experiência da adoção de roupas que marcam a opção ortodoxa daquela que a adotou estaria, portanto, produzindo um senso de identidade, poder e sentido às javanesas entrevistadas (BRENNER, 1996; p. 690).
As três palavras são citadas por Geertz e apontadas como elementos-chave para o entendimento das novas tonalidades da devoção em nossa época. O autor cita uma série de fatos em que política e religião se confundem para concluir que ignorar essa relação seria “passar por cima de uma multiplicidade de coisas que vêm acontecendo nos corações e mentes dos devotos de hoje” (GEERTZ, 2001; p. 152).
O exemplo de Geertz é apontado pelo historiador libanês Albert Hourani como um movimento que teve início no final dos anos 70, início dos 80, no mundo árabe. Mesmo nas ruas, locais de trabalho, e, especialmente, em universidades e escolas, um crescente número de mulheres passou a cobrir os cabelos, e algumas, o rosto, segregando-se social e profissionalmente dos homens. “Pelo que poderia parecer um paradoxo, isso era mais um sinal de afirmação de sua identidade que do poder do homem.” Grande parte daquelas que optou pelo véu não vinha de famílias que praticavam a segregação de sexos, mas adotaram o costume como um ato de escolha deliberada, “resultante de uma certa visão do que deveria ser uma sociedade islâmica, e em certa medida influenciada pela revolução iraniana” (HOURANI, 1994; p. 439).
A retomada do uso do véu como marca de um movimento devocional crescente também é apontado por Lila Abu-Lughod, que realizou trabalho de campo no Egito. De acordo com a pesquisadora da Universidade de Columbia, o aumento do uso atual do véu nos centros urbanos tem sido observado em várias partes do mundo islâmico. Esta tendência estaria associada a um movimento religioso/político, que ela chama de “islamismo” . O uso do véu se basearia em ideais de modéstia, mas estão explicitamente ligados ao comprometimento com outros ideais religiosos e à identidade muçulmana. Seguindo essa mesma tendência, os homens que querem demonstrar sua adesão ao movimento também adotam uma vestimenta diferenciada: usam roupas brancas e um gorro na cabeça, além de barbas longas (ABU-LUGHOD, 1999; pp. xix-xx).
Na Europa, a mesma tendência tem se verificado e vem suscitando polêmica desde o final da década de 80, quando meninas que usavam o hijab (véu que cobre os cabelos) passaram a ser barradas nas escolas públicas da França, sob alegação de que elas feriam a laicidade do sistema educacional.
Caitlin Killian (2003) pesquisou a opinião de muçulmanas originárias do Norte da África e que vivem na França sobre a proibição da peça pelo governo do país. A pesquisadora aponta que características como idade e grau de educação influenciam seus discursos sobre o uso do véu como um contestado símbolo de cultura, religião e gênero. Entre as que aprovam o uso, muitas usaram em seu favor argumentos como respeito a direitos e a liberdade individual daquelas que optam por aderir ao véu. Portanto, elas veriam a opção do uso do véu como coerente com um discurso progressista.
Françoise Gaspard e Farhad Khosrokhavar (1995) entrevistaram meninas que foram proibidas de entrar nas escolas francesas de véu. Segundo as autoras, a maioria das adolescentes e pré-adolescentes usava o véu por pressão familiar. Por outro lado, as mais velhas, entre 18 e 22 anos, tendiam a adotar o véu por convicção religiosa ou como um símbolo de diferença e orgulho de sua identidade étnica. Esse dado vai de encontro com a pesquisa realizada pelo jornal Le Monde em 1989 e que corrobora a idéia de que uma geração de jovens que saíram da adolescência tende a ser mais flexível com a idéia do véu. As entrevistadas mais velhas tendiam a condenar mais o uso do véu do que as mais jovens: 67% contra 44%, respectivamente (KILLIAN, 2003; p. 572-3). Os dados parecem indicar que a opção pelo uso do véu é mais comum entre as pós-adolescentes.
É interessante notar que as meninas entrevistadas por Gaspard e Khosrokhavar, que insistiram em usar o véu nas escolas francesas mesmo sendo proibidas por lei, rejeitam o que elas enxergam como uma tentativa de desvalorização da cultura de seus pais e uma ênfase na assimilação. Por outro lado, aceitam integrar-se por meio da escolarização e da entrada no mercado de trabalho e desejam ser reconhecidas como francesas e muçulmanas (GASPARD e KHOSROKHAVAR, 1995).
Enquanto, por um lado, tal atitude parece reforçar uma visão tradicional do lugar das mulheres na sociedade (HOURANI, 1994; p. 439), o paradoxo (de mulheres educadas e integrantes do mercado de trabalho) pode ser um “feminismo ao reverso” com conotações políticas e morais. Ou melhor, o entrelaçamento das referências seculares e sagradas representadas pela adoção do uso do véu podem ser vistos como uma reação ao feminismo secular ocidental e como parte de uma busca por uma forma islâmica de protesto contra o poder masculino (WATSON, 1994; p.152).
O fato é que no Brasil temos uma situação que ainda não se mostra clara devido à falta de pesquisas a esse respeito. Fatores como o número menor de imigrantes e descendentes, a distância dos países de origem, e a tradição de recebimento de correntes migratórias fazem com que o caso brasileiro seja bastante específico. No país, até o número de muçulmanos é incerto . Sabe-se apenas que grande parte deles é formada por imigrantes do Líbano e da Síria e seus descendentes . Além da colônia árabe-muçulmana, o país possui um contingente de convertidos. Segundo o sheik Jihad Hassan Hammadeh, um dos líderes da comunidade no Brasil, a maioria deles é do sexo feminino: de cada dez conversões, sete são de mulheres (SOMMA, 2007: p. 69).
Há indícios de que no Brasil, a adesão ao uso do véu se relaciona mais com uma construção identitária do que com um apelo político, como ocorre no Egito e na França. Em dissertação de mestrado que trata do uso do véu em Juiz de Fora (MG), Fawzia Cunha demonstra que a maior parte das muçulmanas que aderiu ao véu, entrevistadas em sua pesquisa, tem o segundo grau completo e trabalha fora de casa. A autora conclui que o véu em Juiz de Fora não vem sendo utilizado como instrumento de luta política, apesar de muitas delas terem optado pelo uso após os atentados de 11 de setembro de 2001. Mas, como uma afirmação de identidade religiosa e pessoal (CUNHA, 2006; p. 125).
É interessante notar que entre as entrevistadas de Cunha e também de Ferreira (2001), autora de dissertação sobre imagens de muçulmanas, há muitas que optaram pelo véu apesar de suas mães nunca terem usado. Será que após 11 de setembro, e a decorrente atenção dispensada pela imprensa em relação aos seus desdobramentos, não teriam contribuído para que houvesse algum outro tipo de engajamento, como o de cunho político ?
O próprio uso do véu concede algum status dentro do grupo. Segundo Ferreira, após cobrir o cabelo, uma de suas entrevistadas, Magda Latif passou a ocupar um outro estatuto dentro de seu grupo: “respeitada por todos, pela inteligência e capacidade de articular e passar adiante os ensinamentos do islamismo”. A autora afirma ainda que Magda se tornou um expoente do grupo, pois passou a dar entrevistas para revistas e programas de TV (FERREIRA, 2001; pp. 59-60). Contudo, a notoriedade explica mais a manutenção do véu do que a opção por seu uso. O véu não ajudaria sua portadora a legitimar seu proselitismo e, por que não, seu papel de porta-voz da comunidade?
Provavelmente as entrevistas de Magda a veículos de imprensa aumentaram após 11 de setembro de 2001. A vestimenta islâmica feminina provoca fascínio, como prova a grande quantidade de reportagens sobre o assunto. A imagem de muçulmanas cobertas, seja qual for o tipo de vestimenta, serve para ilustrar reportagens de diferentes assuntos relacionados ao mundo islâmico, de guerras a turismo, mesmo antes dos atentados de 2001.
Mas Lila Abu-Lughod enfatiza que a mobilização da mídia e de grupos feministas nos Estados Unidos e na Europa se dá mais facilmente quando são homens muçulmanos oprimindo mulheres muçulmanas: “women of cover for whom they can feel sorry and in relation to whom they can feel smugly superior” . A mesma atenção não é dada às mulheres palestinas, por exemplo, que sofrem privações diárias (ABU-LUGHOD, 2002; p. 787), em conseqüência de uma ocupação de não-muçulmanos. A questão da opressão das mulheres muçulmanas por homens muçulmanos, a violência praticada pelos “outros”, é o que parece atrair a atenção da imprensa.
Outra importante questão é que a ausência de voz das mulheres muçulmanas para falar sobre elas mesmas nos meios de comunicação. Em pesquisa realizada em minha dissertação de mestrado, constatei que muito da condição das muçulmanas afegãs foi evocado, principalmente o uso da burca . Reportagens que passeavam em campos de refugiados com mulheres cobertas foram escritas, com as devidas descrições e fotografias das vestimentas. Mas suas vozes nunca eram apresentadas (CASTRO, 2007; p. 77). Esse fato parece confirmar a idéia apontada por Ayotte e Husain (2005, p. 115) de que sempre há um “ventríloquo” (texto narrativo do jornalista) falando por cima das afegãs ou por elas. A opressão por meio do silenciamento das muçulmanas se mostrou uma prática jornalística comum nos jornais pesquisados (Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) em relação às afegãs.
Mas isso parece ocorrer também em outros veículos e em relação às mulheres árabes. A pesquisadora Linda Steet (2000) analisou todas as reportagens sobre o mundo árabe, essencialmente muçulmano, em edições da revista National Geographic entre 1888, data que foi publicada pela primeira vez, e 1988, quando completou 100 anos. Entre as principais conclusões que chegou, está a de que “a mulher oprimida” foi tema recorrente em um século de reportagens da revista. A vestimenta islâmica destacou-se nessa cobertura por supostamente demonstrar uma submissão feminina.
Ao mesmo tempo em que a imprensa constrói o retrato de que as mulheres muçulmanas são indefesas – seguindo o discurso hegemônico –, a corrente contrária, conhecida como “islã fundamentalista”, mas que prefiro chamar de ativista, também utiliza o discurso da opressão para impor seu ponto de vista. “Still, Muslim women are feeling like pawns in a political game: jihadists portray them as ignorant lambs who need to be protected from outside forces, while the United States considers them helpless victims of a backward society to be saved through military intervention” (ALI, 2005) . A manipulação da imagem das muçulmanas de véu não estaria escondendo suas principais motivações, conflitos e, principalmente, suas vozes sobre sua própria condição?
Talvez este discurso faça parte do que Omar Ribeiro Thomaz (2001) chama de “ansiedades” de nossos Estados nacionais. Esse discurso, legitimado pela imprensa, muitas vezes deixa de lado as verdadeiras necessidades e anseios das populações enfocadas. Quem melhor pode falar sobre o uso da vestimenta religiosa: um Estado ou as próprias usuárias?
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Isabelle Somma , é jornalista e doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo