por Mário Lopes
para o jornal português PÚBLICO
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Yusuf Islam, nome adoptado por Cat Stevens após a conversão islamismo, editou há três anos um álbum "secular", pondo fim a um silêncio de três décadas. Há uma semana, anunciou uma digressão e um musical
Há uma semana, Yusuf Islam anunciou uma digressão para os meses de Outubro e Novembro. Até agora, não passa de curta viagem de quatro datas no Reino Unido (Dublin, Birmingham, Liverpool e Londres). Contudo, o anúncio em si é notícia. Falamos afinal de Yusuf Islam, que outrora conhecemos como Cat Stevens. Convertido ao islamismo em 1979, abandonou aí uma carreira que o tornara um dos nomes mais cintilantes do estrelato pop da década de 1970.
Em 2006, fomos surpreendidos porAn Other Cup, o seu álbum de regresso. Já este ano, chegou um novo disco,Roadsinger, e com ele a ideia de um musical sobre a sua vida peculiar. De títuloMoonshadow, o mesmo de um dos seus clássicos, prevê-se que estreie no início de 2010. E, de facto, muito haverá para contar sobre aquele que em 1966, quando era adolescente de voz colocada e ar demod elegante, irrompeu pela cena pop britânica. A história de uma vida (que são três). Recuemos nela.
Em 1976, de férias em Malibu, Cat Stevens foi dar um mergulho no mar californiano. Tinha sobrevivido à sua primeira morte artística quase uma década antes, quando, aos dezanove anos, acabou a vida de estrelato pop, de sexo, drogas, rock"n"roll e noites longas animadas pela companhia dos amigos íntimos Paul McCartney e Pete Townshend. Uma tuberculose atirou-o para um asilo durante quatro meses, mais um ano foi passado em recuperação e, quando regressou, Cat Stevens já deixara para trás a imagem de quebra corações em fato de bom recorte, deixara para trás a pop de orquestrações opulentas que lhe conhecíamos de canções como Matthew and son.
Naquele dia de 1976 em que foi dar um mergulho numa praia de Malibu, Cat Stevens já era esse outro que nasceu depois da tuberculose: novamente mega estrela, mas com uma carreira que assentava em trovadorismo de cantautor, qual psicanalista diagnosticando as ansiedades da sua geração com voz suave e barba de profeta - digamos que, em canções como Peace trainouMorning has broken acariciava uma geração à procura de respostas em gurus de guitarra em punho.
Em Malibu, retomamos, Cat Stevens nadou e ficou preso nas fortes correntes do Pacífico. Lutou para regressar a terra, mas o mar puxou-o para longe. Em desespero, contaria depois, gritou: "Oh Deus!, se me salvares, trabalharei para ti". No segundo seguinte, ergueu-se uma onda que o devolveu à costa.
Ele que, nos anos anteriores, procurara no budismo uma resposta espiritual à insatisfação que, dizia, a fama e uma vida luxuosa não diminuíra, encontrou nesse episódio a solução. Pouco antes, o irmão, regressado de Jerusalém, oferecera-lhe um exemplar do Corão. Cat Stevens terminava ali a sua segunda vida. A 23 de Dezembro de 1977, converteu-se oficialmente ao Islão, adoptando o nome Yusuf Islam. Em Novembro de 1979, deu o seu último concerto. Pouco depois, reuniu todos os seus instrumentos e leiloou-os. Casou, abriu uma escola islâmica, tornou-se o mais famoso britânico convertido ao islamismo. Até que...
Até que, em 2005, depois de ter passado a década anterior a gravar álbuns infantis e canções devocionais (feitos apenas de voz e percussão), anunciou que voltara a pegar na guitarra e que preparava um álbum de música "secular".
An Other Cup, de 2006, marcou o regresso. Na capa lia-se Yusuf Islam, num autocolante nele colado, "o artista anteriormente conhecido como Cat Stevens". A partir daí, aos olhos do público, renascia a sua carreira enquanto músico. Deu concertos, recuperou as suas velhas canções e editou em Maio deste ano um segundo álbum como Yusuf Islam, intituladoRoadsingere que, mais despido e intimista que o seu antecessor, comparou aTea For The Tillerman(1970), um dos mais momentos mais marcantes da sua discografia. Agora, há a digressão de quatro datas e o anúncio de um musical. Comparando a música que fazia antes, quando era Cat, e a que faz agora que é Yusuf, declarou em Maio passado aoGuardian: "Antes, escrevia sobre andar na estrada à procura de qualquer coisa. Ainda estou a escrever sobre essa viagem, mas agora tenho o luxo de ter um pequeno mapa no bolso". O mapa, presumiu o jornalista doGuardian e presumimos nós, é o Corão.
Yusuf Islam: réu e vítima
Filho de um grego ortodoxo e de uma sueca protestante luterana, Yusuf Islam, que nasceu Steven Georgiou em 1948, em Londres, e cresceu no Soho, bem no coração do centro de teatros e entretenimento da capital inglesa - em pequeno, tinha por hábito subir ao telhado de sua casa para ver todas aquelas luzes e ouvir o rumor dos musicais subir das salas abaixo -, é hoje um dos mais destacados membros da comunidade islâmica londrina. Benemérito, cede milhões por ano a caridade. Fundou a Small Kindness, associação que apoia órfãos e famílias necessitadas dos Balcãs ao Iraque e gere desde 1981 aquelas que se tornariam as primeiras escolas islâmicas britânicas e receber subsídios estatais - depois dos ataques terroristas de 7 de Julho de 2005, Tony Blair convocou-o para que reunisse um comité de aconselhamento do governo na questão do extremismo e desenraizamento da juventude muçulmana inglesa.
Porém, apesar da sua intensa actividade de beneficência e das várias distinções pelo trabalho no estabelecimento de pontes de compreensão inter-religiosas, o nome Yusuf Islam não tem escapado à polémica - quer como réu, quer como vítima.
Em 1989, ateou a polémica que envolveu o lançamento de Versículos Satânicos, de Salman Rushdie, ao considerar que a pena inscrita no Corão para uma ofensa a Maomé era, precisamente, a morte. Apesar de, posteriormente, ter afirmado que ele próprio, individualmente, não apoiava afatwalançada sobre o escritor peloayatollah Khomeini, justificando que dera tal resposta como estudioso principiante do Corão e que penas semelhantes para tais "crimes" seriam também encontradas na Bíblia, a sua imagem de moderado foi seriamente abalada - nos Estados Unidos, várias rádios deixaram de tocar a sua música e houve quem, sentindo-se traído, saísse à rua para destruir discos de Cat Stevens até então religiosamente guardados em casa.
Um ano depois, viu negada a entrada em Jerusalém pelas autoridades israelitas, que o acusavam de numa visita anterior, em 1988, ter doado dezenas de milhares de dólares ao Hamas, classificado como um grupo terrorista palestiniano - em 2000, fez nova tentativa de chegar à Cidade Santa e foi novamente proibido de o fazer.
No mundo pós-11 de Setembro, o réu passou a vítima. Estávamos em 2004 e Yusuf Islam viajava com a filha (foi pai cinco vezes) até Nashville, onde iria discutir um projecto musical com representantes de uma editora. Antes de chegar ao destino, Washington, o avião fez um desvio inesperado, aterrando naquilo que Islam, num artigo assinado para o Guardian, descreveu como um "aeroporto fantasma". Levados, ele e filha, para salas separadas, foram interrogados durante horas por agentes do FBI. "Trataram-nos bem", escreveu, "mas havia uma dúvida insuportável a ecoar na minha mente: "Porquê?" Ninguém conseguia responder a essa questão".
Passadas algumas horas, a sua filha foi autorizada a seguir viagem. Quanto a ele, negada a entrada nos Estados Unidos pelo "desenvolvimento de actividades que poderão, potencialmente, estar ligadas a terrorismo", como justificou na altura à ABC um porta-voz da Segurança Interna americana (ainda a questão Hamas), foi conduzido até Boston e, no dia seguinte, repatriado para Inglaterra. Regressaria aos Estados Unidos dois anos depois, já riscado da lista de potenciais terroristas ou apoiantes de terrorismo, para promover An Other Cup.
Yusuf Islam, que voltou a pegar na guitarra depois do filho Mohammed, que mantinha, às escondidas do pai uma embrionária carreira musical, surgir em casa com uma, continua a desenvolver o seu trabalho de beneficência, mantém-se um muçulmano devoto que divide a sua vida entre a Londres natal e o Dubai, estado que considera exemplo de futuro para os países islâmicos. Na biografia incluída no seu site oficial, diz-se numa posição única: "Um espelho através do qual os muçulmanos podem ver o Ocidente e o Ocidente pode ver o Islão. É importante para mim ser capaz de ajudar a construir pontes sobre as barreiras culturais que outros têm por vezes receio de ultrapassar".
Agora, três décadas depois, é pela música que voltamos a ouvir Yusuf Islam, o artista anteriormente conhecido como Cat Stevens. Prova-o a última polémica que o envolveu, quando acusou os Coldplay de, em Viva la vida, terem plagiado a suaForeigner suite, editada em 1973. Perdoou-os no mesmo momento: "Não acho que o tenham feito de propósito. Eu próprio já me copiei sem o saber", declarou à imprensa britânica. Pouco tempo depois, a World Entertainment News Network divulgou uma notícia que o acusava de misoginia, de não se dirigir a mulheres que não vestissem o véu islâmico. A agência foi alvo de um processo judicial, Yusuf Islam ganhou-o e doou a indemnização a instituições de caridade.
Agora que Yusuf Islam voltou a cantar como Cat Stevens, uma coisa daquelas nem atinge o estatuto de polémica.