Entrevista Maria Rita Kehl
Em entrevista exclusiva para Caros Amigos, a psicanalista fala de seu novo livro, analisa as conseqüências do ritmo frenético da vida contemporânea e aponta a depressão como sintoma social de uma sociedade que cria o “sujeito esvaziado” Maria Rita Kehl conta a sua experiência como Jornalista, nos anos 70 e 80 e, mais recentemente, como psicanalista de homens e mulheres que integram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,na Escola Nacional Florestan Fernandes.Participaram da entrevista: Ana Maria Straube, Camila Martins, Felipe Larsen, Fernando Lavieri, Hamilton Octavio de Souza, Luana Schabib, Renato Pompeu, Tatiana Merlino.
Tatiana Merlino: Qual sua origem, e como você entrou para a psicanálise.Maria Rita: Nasci na cidade de Campinas aqui do lado, apesar de me considerar paulistana. Todos os filhos são de Campinas, mas fomos criados aqui, passei a vida inteira no bairro de Pinheiros. Estudei em uns colégios de freiras. Minha mãe era religiosa, e depois fiz psicologia na USP em 71 a 75, no período mais fechado da Universidade, com muita gente cassada. Então, muito insatisfeita com o curso, lá pelo terceiro ano eu queria trabalhar, sair de casa. E bati na porta do Jornal do Bairro, cujo diretor era o Raduan Nassar, que ainda não era o grande escritor, e falei: “Eu quero escrever”. Eu queria trabalhar em alguma coisa que não fosse psicologia, que me parecia na época uma coisa muito xarope. E aí o editor, José Carlos Abbate, e o Raduan foram muito generosos, do tipo: “Bom, você sabe escrever, mas não sabe o que é jornalismo, escreve trabalho de escola”. E eles falavam: “Vai assistir tal filme”. Aí me ensinaram o que é um abre de uma matéria, enfim, que não pode ter cara de trabalho escolar. E eu virei jornalista free lance, em seguida veio a lei que exigia registro. Foi muito formadora para mim a época dos jornais alternativos, dos tablóides, foi o único lugar em que eu pude ser contratada numa redação, porque eles já estavam totalmente irregulares mesmo, então eles contratavam gente que era de movimentos. Foram três anos, de 75 a 78 no máximo, mas foi muito marcante, muito formador, porque foi o período que eu pude alargar esse horizonte de uma faculdade de psicologia, numa formação um pouco medíocre numa época em que estava todo mundo com medo, mesmo porque eu nunca entrei para a luta armada nem nada. Mas as coisas que me acontecem hoje eu devo muito a esse período.
Hamilton Otávio de Souza: O Jornal do Bairro?Não. Ele foi uma iniciação para eu aprender a escrever, não era jornal de esquerda. Mas era muito legal, porque era um jornal muito engraçado. Ele era a capa, com artigos de política, e a contracapa, com artigos de cultura, e o resto eram anúncios. E todos os artigos eram escritos em 40 linhas. Em 40 linhas você aprende a pegar o fundamental, você não precisa entender do assunto, você junta umas idéias, faz um texto razoável, agradável, põe uma abertura chamativa, um final retumbante e ponto. Quarenta linhas é o meu forte, digamos assim.
Hamilton Otávio de Souza: Você colaborou com aqueles jornais feministas da época?No Mulherio. Recebi a notícia que esse jornal ia começar e eu era levemente atraída pela esquerda. Eu não tinha formação política: no começo, nas reuniões de pauta tinha que disfarçar a minha ignorância. Como eu era disponível, eles precisavam de gente que pudesse ganhar pouco e de gente que eles pudessem fazer a cabeçaim. Porque eles não podiam contar, aí na época era o Movimento era do PCdoB mesmo, eu nem sabia o que era PCdoB. Eu sabia que era um jornal de oposição à ditadura e isso me interessou. Em um ano eu era editora de cultura, mas você tem que ir na raça. Não tem quem faça, você faz. Então, foi muito legal.
Camila Martins: E lá você foi também desenvolvendo essa formação?Maria Rita: É, e nunca não mais parou, porque isso é uma coisa que não pára, não vou dizer que seja uma formação, é uma trajetória. Talvez eu tenha descoberto uma coisa que tinha mais a ver comigo e eu estava fora disso. Engraçado que depois de mim, os meus irmãos, a minha família é razoavelmente de esquerda.. Meu pai não era, mas ele morreu dizendo: “Na próxima eleição, eu vou votar no Lula”. Ele morreu em 2000. Uma família um pouco inconvencional, sempre foi um pouco gauche. Então o esquerdismo caiu bem, para todo mundo quando a gente começou a se abrir, para todo mundo fez sentido. Então, eu fiquei uns sete anos só como jornalista. Teve um momento que eu fiquei um pouco insatisfeita. Fui virando free lancer para poder sobreviver. Folha, Veja, Isto É. Mas eu cobria várias coisas da área de cultura. E senti que eu não sabia nada com muita consistência. Aí fui fazer um mestrado uns quatro anos depois de formada e sobre televisão, pois, por causa da minha prática em jornalismo cultural, falei:”Ninguém está percebendo o que a televisão está fazendo no Brasil”. Na época, a única pessoa que escrevia sobre televisão era a Helena Silveira, que comentava as novelas, falava dos figurinos. E só depois que fiz a tese é que eu fui perceber que podia ser psicanalista.Na verdade, é uma coisa ruim de contar hoje porque não é uma coisa que os psicanalistas respeitam. Mas foi no trambolhão, tinha meu filho pequeno; o pai do meu filho morava em uma comunidade, eu morava em outra. Eu já morava há um bom tempo. Era uma casa que caiu, uma casa genial, daquelas antigas na rua Matheus Grou, que você entra e tem um porão aqui, e sobe uma escada, tem um corredor, a cozinha é lá no fundo, o banheiro é depois da cozinha. Morei em várias comunidades, mas essa foi a mais marcante, tinham uns refugiados que vinham morar com a gente, era uma delícia, meu filho nasceu aí. Eu saia e deixava o pessoal tomando conta, era muito legal. Então, eu tive uma bolsa da Fapesp, que era muito bom porque eu podia fazer a minha tese e ficar bastante com o Luan, meu filho. E no mesmo ano a comunidade terminou, cada um foi morar numa casinha. A a bolsa terminou, e eu tinha que fazer alguma coisa, com filho para sustentar. Tive um trabalho rapidinho na Rádio Mulher, me chamaram para fazer um programa que eram entrevistas ao vivo, e as mulheres ligavam e a gente dava respostas, era muito divertido. O programa acabou também. E eu abri consultório no dia seguinte, uma menina da rádio me pediu terapia, e no dia seguinte, sem nada, sem nenhum preparo, eu estava fazendo o consultório. Foi em 1981, desde lá eu sou psicanalista, nunca mais larguei. Aí foi fazendo cada vez mais sentido, até hoje cada vez eu mais me espanto com isso.
Ana Maria Straube: E sua tese de televisão já tinha alguma coisa a ver com psicanálise?Nada, nada. Claro que se você faz psicologia, lê algumas coisas, você tem um pouco de abertura para entender com objetividade. A minha tese era “O papel da Rede Globo e das novelas da Globo em domesticar o Brasil durante a ditadura militar”. Pegava desde a primeira novela, foi de 73, as novelas das 8, desde Irmãos Coragem até na época, que era Dancing Days, mostrando como se criou um retrato, uma imagem do Brasil para si mesmo. A brincadeira na época era assim: a única coisa que os militares conseguiram modernizar durante 20 anos de ditadura foi a imagem televisiva que o Brasil apresentava para o próprio Brasil, que é o que o Brasil acreditou. E a minha tese era mais ou menos isso.
Camila Martins: Você viveu essa questão da mulher nos anos 70, da luta feminina?Olha, eu fui muito pouco feminista. Eu falo isso até com um pouco de sentimento de culpa de não ter prestado atenção em uma coisa importante. Por exemplo, a minha contemporânea na USP, era Raquel Moreno que é uma feminista importante, militante desde o começo. Eu achava aquilo uma chatice, eu não queria ir naquelas coisas, eu achava que eu não era oprimida, que eu me virava muito bem, que eu não tinha esse problema. Talvez porque eu estivesse achando a minha vida com os homens muito divertida. Depois que eu tive filho é que, embora fosse tudo muito libertário, quem carregou o piano sozinha fui eu. Aí eu falei: “Opa! Negócio de feminismo, pelo menos para a mulher que tem filho faz sentido. Não dá para dizer que eu estou livre disso não”. E eu, não sei, não me acho uma feminista de bandeira, porque pelo menos na minha geração tinha uma bandeira feminista que até hoje eu não embarco, que é “mulher e homem é igual”. Eu acho que isso criou um ambiente meio belicoso, não que eu não brigue com os homens, mas brigar assim por mesquinharia: eu lavei dez pratos você tem que lavar dez, não posso lavar onze e você lavar nove. Eu morava em comunidade. Cada um tinha um dia para fazer supermercado, para lavar, e claro que a gente brigava porque sempre tinha um cara que folgava. No jornalismo, por exemplo, olha como as coisas são contraditórias, na época, por eu ser mulher eu acho que eu tive uma chance que se eu fosse um rapaz eu não teria, de entrar numa redação, onde só tinha homem. Hoje em dia ninguém te olha se você é mulher ou não é porque está tudo igual hoje. Só tinha homem, eu entrei e falei “não sou jornalista mas eu quero escrever”, e veio um cara legal me ensinar, entendeu? Como que isso iria acontecer se eu fosse rapaz? Viviam fazendo umas gracinhas, evidente, mas eu acho que tinha um paternalismo. Você é jovem, você é mulher, sabe. Legal ter uma mulher na redação. Eu acho que tive um pouquinho de facilidades por esse lado, e tive, evidentemente, de vez em quando uns problemas com machistas. Eu era totalmente riponga, eu andava com um saco de batata. Mas era atrasar uma reunião de pauta e o cara dizer: “É, porque você fica se empetecando na frente do espelho”.
Camila Martins: A gente pode ver a questão da mulher presente em alguns artigos que você escreve.Sim, mas a minha briga feminista teórica é dentro da psicanálise, porque eu acho que a psicanálise freudiana e lacaniana tem uma incompreensão da questão da diferença entre homens e mulheres. Resumindo, Freud desenvolveu a teoria dele sobre o complexo de Édipo baseado evidentemente nos restos de fantasias infantis de seus pacientes, e na fantasia infantil do menino principalmente, mas também da menina, o fato de haver uma diferenciação de um órgão sexual maior que o outro, então a mulher é inferior. Isso passa para a teoria quase sem mediação simbólica. Você encontra em muitos momentos, não é unânime, esse malentendido de que a chamada castração está do lado da mulher, porque o homem tem o pênis. Então, a minha tese de doutorado, já nos anos 90, tem essa discussão sobre o modo como os psicanalistas escutam suas pacientes mulheres, e como a psicanálise, se continuar escutando desse jeito, não oferece outra saída para as mulheres senão a histeria. Que a mulher que se sente inferior e que inveja o homem, e como se a mulher tivesse condenada a isso, de acordo com uma certa escuta psicanalítica. Então a minha tese é feminista nesse sentido.
Tatiana Merlino: Qual sua origem, e como você entrou para a psicanálise.Maria Rita: Nasci na cidade de Campinas aqui do lado, apesar de me considerar paulistana. Todos os filhos são de Campinas, mas fomos criados aqui, passei a vida inteira no bairro de Pinheiros. Estudei em uns colégios de freiras. Minha mãe era religiosa, e depois fiz psicologia na USP em 71 a 75, no período mais fechado da Universidade, com muita gente cassada. Então, muito insatisfeita com o curso, lá pelo terceiro ano eu queria trabalhar, sair de casa. E bati na porta do Jornal do Bairro, cujo diretor era o Raduan Nassar, que ainda não era o grande escritor, e falei: “Eu quero escrever”. Eu queria trabalhar em alguma coisa que não fosse psicologia, que me parecia na época uma coisa muito xarope. E aí o editor, José Carlos Abbate, e o Raduan foram muito generosos, do tipo: “Bom, você sabe escrever, mas não sabe o que é jornalismo, escreve trabalho de escola”. E eles falavam: “Vai assistir tal filme”. Aí me ensinaram o que é um abre de uma matéria, enfim, que não pode ter cara de trabalho escolar. E eu virei jornalista free lance, em seguida veio a lei que exigia registro. Foi muito formadora para mim a época dos jornais alternativos, dos tablóides, foi o único lugar em que eu pude ser contratada numa redação, porque eles já estavam totalmente irregulares mesmo, então eles contratavam gente que era de movimentos. Foram três anos, de 75 a 78 no máximo, mas foi muito marcante, muito formador, porque foi o período que eu pude alargar esse horizonte de uma faculdade de psicologia, numa formação um pouco medíocre numa época em que estava todo mundo com medo, mesmo porque eu nunca entrei para a luta armada nem nada. Mas as coisas que me acontecem hoje eu devo muito a esse período.
Hamilton Otávio de Souza: O Jornal do Bairro?Não. Ele foi uma iniciação para eu aprender a escrever, não era jornal de esquerda. Mas era muito legal, porque era um jornal muito engraçado. Ele era a capa, com artigos de política, e a contracapa, com artigos de cultura, e o resto eram anúncios. E todos os artigos eram escritos em 40 linhas. Em 40 linhas você aprende a pegar o fundamental, você não precisa entender do assunto, você junta umas idéias, faz um texto razoável, agradável, põe uma abertura chamativa, um final retumbante e ponto. Quarenta linhas é o meu forte, digamos assim.
Hamilton Otávio de Souza: Você colaborou com aqueles jornais feministas da época?No Mulherio. Recebi a notícia que esse jornal ia começar e eu era levemente atraída pela esquerda. Eu não tinha formação política: no começo, nas reuniões de pauta tinha que disfarçar a minha ignorância. Como eu era disponível, eles precisavam de gente que pudesse ganhar pouco e de gente que eles pudessem fazer a cabeçaim. Porque eles não podiam contar, aí na época era o Movimento era do PCdoB mesmo, eu nem sabia o que era PCdoB. Eu sabia que era um jornal de oposição à ditadura e isso me interessou. Em um ano eu era editora de cultura, mas você tem que ir na raça. Não tem quem faça, você faz. Então, foi muito legal.
Camila Martins: E lá você foi também desenvolvendo essa formação?Maria Rita: É, e nunca não mais parou, porque isso é uma coisa que não pára, não vou dizer que seja uma formação, é uma trajetória. Talvez eu tenha descoberto uma coisa que tinha mais a ver comigo e eu estava fora disso. Engraçado que depois de mim, os meus irmãos, a minha família é razoavelmente de esquerda.. Meu pai não era, mas ele morreu dizendo: “Na próxima eleição, eu vou votar no Lula”. Ele morreu em 2000. Uma família um pouco inconvencional, sempre foi um pouco gauche. Então o esquerdismo caiu bem, para todo mundo quando a gente começou a se abrir, para todo mundo fez sentido. Então, eu fiquei uns sete anos só como jornalista. Teve um momento que eu fiquei um pouco insatisfeita. Fui virando free lancer para poder sobreviver. Folha, Veja, Isto É. Mas eu cobria várias coisas da área de cultura. E senti que eu não sabia nada com muita consistência. Aí fui fazer um mestrado uns quatro anos depois de formada e sobre televisão, pois, por causa da minha prática em jornalismo cultural, falei:”Ninguém está percebendo o que a televisão está fazendo no Brasil”. Na época, a única pessoa que escrevia sobre televisão era a Helena Silveira, que comentava as novelas, falava dos figurinos. E só depois que fiz a tese é que eu fui perceber que podia ser psicanalista.Na verdade, é uma coisa ruim de contar hoje porque não é uma coisa que os psicanalistas respeitam. Mas foi no trambolhão, tinha meu filho pequeno; o pai do meu filho morava em uma comunidade, eu morava em outra. Eu já morava há um bom tempo. Era uma casa que caiu, uma casa genial, daquelas antigas na rua Matheus Grou, que você entra e tem um porão aqui, e sobe uma escada, tem um corredor, a cozinha é lá no fundo, o banheiro é depois da cozinha. Morei em várias comunidades, mas essa foi a mais marcante, tinham uns refugiados que vinham morar com a gente, era uma delícia, meu filho nasceu aí. Eu saia e deixava o pessoal tomando conta, era muito legal. Então, eu tive uma bolsa da Fapesp, que era muito bom porque eu podia fazer a minha tese e ficar bastante com o Luan, meu filho. E no mesmo ano a comunidade terminou, cada um foi morar numa casinha. A a bolsa terminou, e eu tinha que fazer alguma coisa, com filho para sustentar. Tive um trabalho rapidinho na Rádio Mulher, me chamaram para fazer um programa que eram entrevistas ao vivo, e as mulheres ligavam e a gente dava respostas, era muito divertido. O programa acabou também. E eu abri consultório no dia seguinte, uma menina da rádio me pediu terapia, e no dia seguinte, sem nada, sem nenhum preparo, eu estava fazendo o consultório. Foi em 1981, desde lá eu sou psicanalista, nunca mais larguei. Aí foi fazendo cada vez mais sentido, até hoje cada vez eu mais me espanto com isso.
Ana Maria Straube: E sua tese de televisão já tinha alguma coisa a ver com psicanálise?Nada, nada. Claro que se você faz psicologia, lê algumas coisas, você tem um pouco de abertura para entender com objetividade. A minha tese era “O papel da Rede Globo e das novelas da Globo em domesticar o Brasil durante a ditadura militar”. Pegava desde a primeira novela, foi de 73, as novelas das 8, desde Irmãos Coragem até na época, que era Dancing Days, mostrando como se criou um retrato, uma imagem do Brasil para si mesmo. A brincadeira na época era assim: a única coisa que os militares conseguiram modernizar durante 20 anos de ditadura foi a imagem televisiva que o Brasil apresentava para o próprio Brasil, que é o que o Brasil acreditou. E a minha tese era mais ou menos isso.
Camila Martins: Você viveu essa questão da mulher nos anos 70, da luta feminina?Olha, eu fui muito pouco feminista. Eu falo isso até com um pouco de sentimento de culpa de não ter prestado atenção em uma coisa importante. Por exemplo, a minha contemporânea na USP, era Raquel Moreno que é uma feminista importante, militante desde o começo. Eu achava aquilo uma chatice, eu não queria ir naquelas coisas, eu achava que eu não era oprimida, que eu me virava muito bem, que eu não tinha esse problema. Talvez porque eu estivesse achando a minha vida com os homens muito divertida. Depois que eu tive filho é que, embora fosse tudo muito libertário, quem carregou o piano sozinha fui eu. Aí eu falei: “Opa! Negócio de feminismo, pelo menos para a mulher que tem filho faz sentido. Não dá para dizer que eu estou livre disso não”. E eu, não sei, não me acho uma feminista de bandeira, porque pelo menos na minha geração tinha uma bandeira feminista que até hoje eu não embarco, que é “mulher e homem é igual”. Eu acho que isso criou um ambiente meio belicoso, não que eu não brigue com os homens, mas brigar assim por mesquinharia: eu lavei dez pratos você tem que lavar dez, não posso lavar onze e você lavar nove. Eu morava em comunidade. Cada um tinha um dia para fazer supermercado, para lavar, e claro que a gente brigava porque sempre tinha um cara que folgava. No jornalismo, por exemplo, olha como as coisas são contraditórias, na época, por eu ser mulher eu acho que eu tive uma chance que se eu fosse um rapaz eu não teria, de entrar numa redação, onde só tinha homem. Hoje em dia ninguém te olha se você é mulher ou não é porque está tudo igual hoje. Só tinha homem, eu entrei e falei “não sou jornalista mas eu quero escrever”, e veio um cara legal me ensinar, entendeu? Como que isso iria acontecer se eu fosse rapaz? Viviam fazendo umas gracinhas, evidente, mas eu acho que tinha um paternalismo. Você é jovem, você é mulher, sabe. Legal ter uma mulher na redação. Eu acho que tive um pouquinho de facilidades por esse lado, e tive, evidentemente, de vez em quando uns problemas com machistas. Eu era totalmente riponga, eu andava com um saco de batata. Mas era atrasar uma reunião de pauta e o cara dizer: “É, porque você fica se empetecando na frente do espelho”.
Camila Martins: A gente pode ver a questão da mulher presente em alguns artigos que você escreve.Sim, mas a minha briga feminista teórica é dentro da psicanálise, porque eu acho que a psicanálise freudiana e lacaniana tem uma incompreensão da questão da diferença entre homens e mulheres. Resumindo, Freud desenvolveu a teoria dele sobre o complexo de Édipo baseado evidentemente nos restos de fantasias infantis de seus pacientes, e na fantasia infantil do menino principalmente, mas também da menina, o fato de haver uma diferenciação de um órgão sexual maior que o outro, então a mulher é inferior. Isso passa para a teoria quase sem mediação simbólica. Você encontra em muitos momentos, não é unânime, esse malentendido de que a chamada castração está do lado da mulher, porque o homem tem o pênis. Então, a minha tese de doutorado, já nos anos 90, tem essa discussão sobre o modo como os psicanalistas escutam suas pacientes mulheres, e como a psicanálise, se continuar escutando desse jeito, não oferece outra saída para as mulheres senão a histeria. Que a mulher que se sente inferior e que inveja o homem, e como se a mulher tivesse condenada a isso, de acordo com uma certa escuta psicanalítica. Então a minha tese é feminista nesse sentido.
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