terça-feira, 5 de julho de 2011

UM CAPÍTULO DE CIDADANIA

desenho: http://www.wallpaperez.org/children/Children-play-act-705.html
 Foi no final do ano de 1998. Aparentava ser um dia como qualquer outro. Na sala da Defensoria Pública, então chamada de PAJ, ou seja, dos advogados públicos que atuavam nos casos de quem não tinha condições econômicas, havia um mar de gente e um tumulto infindável, algo que nem o genial Kafka seria capaz de imaginar, pois jamais morara no Brasil. Era um volume estrondoso de mães de jovens querendo informações sobre os processos e as internações provisórias envolvendo seus filhos e suas filhas.

Estava na minha mesa, em frente ao computador, redigindo uma peça que hoje não me lembro qual era, quando fui interrompido pela voz do meirinho, que me chamava para as audiências que se iniciavam, vinda da porta da sala e que mesclava-se a tantas outras vozes de mães e namoradas de internos.

E lá fui eu, andando rápido, passando por entre aquele mar de gente, com certo esforço, e colocando às pressas o meu paletó, eternamente amassado, que fazia par à gravata nada elegante.

Cheguei na sala de audiências antes do promotor e do juiz e logo vi ao meu lado esquerdo uma mocinha que aparentava ter entre 9 e 10 anos de idade. Olhei perplexo e, chamando-a pelo nome que vi na capa do processo, perguntei: _ Quantos anos você tem? Ela não demorou em responder: 12 anos. Mas o absurdo que constatei e é objeto desta história não foi esse.

A roupa que a pequena em conflito com a lei vestia indicava que estava privada da liberdade ou, como chamam no meio jurídico, internada provisoriamente, quando ainda não foi proferida a sentença.

Aflito pelo tamanho daquela menina, logo comecei a ler o processo e me deparei com um fato que julguei insignificante e que jamais poderia ensejar uma medida tão drástica como a retirada da liberdade de alguém. Aquela quase infante estava brincando no abrigo para jovens carentes, onde morava, e na inocência da sua idade acertou um prato de plástico numa outra menina que tinha transtornos mentais. Também como se fosse uma obra do absurdo imaginado por Kafka, uma brincadeira de criança como essa virou um processo que acabou na mesa de um juiz de direito e nas barras do Tribunal, como vulgarmente se diz.

Nada do que os fatos evidenciavam, brincadeira de criança sem vítima real, sensibilizou os operadores do direito então envolvidos na história. O promotor de justiça pediu a internação provisória da jovem, que prontamente foi acolhida pelo magistrado. Resultado: a menina foi privada da liberdade provisoriamente e enviada a um local recheado de jovens traficantes e envolvidos em roubos e até homicídios.

Era isso o que o processo de poucas folhas indicava: um absurdo jurídico.

Li e reli os autos e não me conformei. Olhava para a pequena menina e via que ela dependia da minha luta e também de sorte.

O promotor e o juiz chegaram praticamente juntos, os cumprimentei e logo fui informado pelo membro do Ministério Público de que seria pedida a medida de semiliberdade à jovem, com a qual o juiz simpatizou-se, sob o triste argumento de que a menina não tinha mãe e a avó materna não a queria mais em casa. Tentei argumentar que o fato não comportava uma medida tão severa, já que caracterizaria no máximo a contravenção penal de vias de fato, infração de menor potencial ofensivo, e que o abrigamento dela podia resolver a questão de não ter familiares para acolhê-la. Não sensibilizei a ninguém naquele momento.

A pequena assistida confessou ter jogado um prato de plástico, e numa sessão fria houve os debates orais e o juiz aplicou-lhe, em sentença dada em audiência, a semiliberdade.

Fiquei inconformado, mas como não podia sair da sala devido a uma série de audiências que ainda teria pelo resto da tarde e início da noite, consegui reservar não mais que dois minutos para conversar com a jovem. À noite, ao chegar em casa, sem conseguir desviar o pensamento daquela injustiça que presenciei, comecei a redigir uma petição pleiteando a liberação da menina. Era um “Habeas Corpus”, que os juristas chamam de “medida heróica” por fazer algo típico dos super heróis: salvar a liberdade daqueles que, ainda que culpados, não precisavam ter o direito de locomoção cerceado.

Passaram-se uns dias e quando eu estava em frente ao fórum, saindo de um restaurante por quilo, ouvi me chamarem pelo nome. Olhei para trás e vi aquela menininha da audiência. Lembrava-me do nome dela e ainda me lembro, como também da sua fisionomia. Surpreso, perguntei o que estava fazendo lá e ela, didática, me disse: um juiz me internou e outro me liberou. Foi o suficiente para eu entender que ela havia sido liberada. Perguntei como ela estava e logo me despedi, ansioso por pesquisar o caso na internet e ver o resultado do pedido que havia formulado. Depois de poucos minutos conseguir constatar que o desembargador para quem foi distribuído o processo, então considerado um dos magistrados mais conservadores, havia deferido liminarmente a liberação dela, com inserção em medida protetiva de abrigo. De certo, assim como a menininha da história, esse Desembargador teve infância e viveu momentos de ingenuidade, pureza, brincadeira e leveza.

Passados dois meses, o mérito do processo foi apreciado e todos os desembargadores que participaram do julgamento concederam a ordem para determinar tão somente o abrigamento da pequenina jovem, sem a aplicação de qualquer outra medida, ou seja, ela não voltaria para qualquer unidade da então Febem.

Passaram-se meses e até anos e eu encontrei a então menininha mais algumas vezes. Confesso que o final da história de vida dela não foi feliz, não por falta de luta e empenho de muitos profissionais envolvidos, mas pela falta de investimento adequado de recursos pelos órgãos responsáveis.

Prefiro, então, ater-me a esse capítulo da vida dessa menina que brincou, lutou e sagrou-se em alguns momentos, e nesse em especial, cidadã, como o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece.

Para refletir:

Para viver, sinta, sonhe e ame.
Não deseje apenas coisas materiais.
Deseje o bem e multiplique as boas ações.
Sorria, sim. Mas ame mais.

Ame a si, aos outros, a quem está próximo e distante.
Ame quem errou e quem acertou.
Não diferencie.

O amor não julga. O amor não pune. O amor aceita.
Pense nisso e aceite a vida.

Vamos brincar com as palavras?



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