Para mim, antes de tudo leitora, Glauco era um gênio esfumaçado, um poema do Ramones. Um poema a evocar aquela célebre letra do grupo de rock americano que pedia não a morte ou a trip eterna dos homens, mas o temporário torpor. Glauco era um gênio do Brasil porque, dentro de sua nuvem imaginativa, reescrevia este país doce e continuamente, sem mágoa, com diversão e respeito.
Sua turma era a de Angeli e Laerte, outros desenhistas e fabulistas brasileiros extraordinários, los tres amigos, como se auto-intitularam e desenharam de maneira paródica há um par de décadas. Convenhamos que Angeli também sabe construir tipos. Mas ri deles. Ele é muito diferente de Rê-Bordosa, o exato oposto de Bibelô, tripudia Meia-Oito, é superior aos três. Laerte especializou-se em materializar de forma inimaginável o pensamento. Quem raciocina como Laerte não precisa de mais nada, a rigor, nem mesmo desenhar.
São os dois, assim, perfeitamente diferentes de Glauco, o grande amigo. Ele não era superior aos personagens que criava, nem os interiorizava. Simplesmente significava um deles, à moda do que apontava Gustave Flaubert em sua Bovary. Glauco parecia ser exatamente o Geraldão das agulhas excessivas, do muito querer esquecer-se, do muito desejar viver. Tivera tempo de ensinar às crianças a poesia que há em enfileirar sorvetes como Geraldinho, e apontar em que essas habilidades poderiam dar.
Não estranhe a comparação. Glauco não era um romancista do século 19 francês. Era, como se disse antes, um gênio divertido, solto, simples do Brasil, que sabia reproduzi-lo no tom da verdade, habilidade que fez de Flaubert um Flaubert e de Glauco, um autor de poemas.
Veja Dona Marta, um dos maiores tipos ficcionais do desenho. A tal senhora sabe ou não sabe que envelheceu e que não há homem nesse mundo, especialmente o homem jovem, que tope o seu fervor? O que é qualquer auto-estima de um ser humano diante daquela que Martinha tem? Ela é a maior fashion lady possível, totalmente sem noção, figura terna de alheamento. E uma batalhadora, também. Marta e qualquer brasileiro têm de meter os peitos em sociedade, ou a sociedade não os verá, o artista percebeu.
Nos anos 80, trabalhei algo perto de Glauco, mas, redatora das coisas da cidade na Folha de S. Paulo, mal o via ou ele, a mim. Bem, ele não me veria de qualquer modo. Estava sempre por lá, profissional, sorridente, mas ocupado com coisas mais importantes, dentro ou fora da estranha nuvem.
A cada pequena caricatura sua de Lula, por exemplo, víamos um homem inteiro. Ele não precisava de muitos traços para definir o metalúrgico, o líder sindical, o presidente. Uma barbinha, uma perninha em movimento, multiplicada em muitas, desnudava o tipo, imediatamente reconhecível por qualquer leitor sem imaginação. Glauco saía incólume de todo o posicionamento político de seu jornal, já que não direcionava o pensamento a uma ideologia, antes à essência existencial dos homens públicos, sua grandeza ou a mediocridade sem fim.
Glauco, de 53 anos, morto a tiros sexta-feira 12, em sua casa de Osasco, junto ao filho Raoni, de 25, supostamente por alguém da comunidade com a qual ele contribuía, foi vítima de uma barbárie. Mais uma daquelas brasileiras a ultrapassar qualquer sentido. Sua vida foi curta, intensa e estranha, mas ele soube rir.